27/07/10

Foi há 40 anos que o Salazar bateu as botas e a minha mãe acabou a noite na António Maria Cardoso, então sede da PIDE, hoje um condomínio de luxo

[Já contei esta história lá atrás mas recordo-a em dia de festa]
Em minha casa foi tudo preso pelo menos uma vez. A qualidade das estadias na cadeia variou muito, com o meu pai a bater o recorde de mais ou menos três anos entre os Fortes de Caxias e de Peniche — o de Peniche, consideravelmente mais húmido.
A história que quero contar diz respeito à minha mãe.
A minha mãe foi levada para a sede da PIDE, local onde se ergue agora um condomínio de luxo com vista, ouvi dizer, sobre um marco de suplícios, exactamente há 40 anos. Foi no dia em que o Oliveira bateu asas e voou, apesar de na altura a Coca-Cola estar proibida e ninguém ainda ter inventado o Red Bull.
A minha mãe trabalhava então numa editora anti-regime, a "Seara Nova", que a ânsia pelo poder (absoluto) do PC haveria de levar à falência no pós-25 de Abril. Oficialmente, ninguém sabia que o ditador já tinha ido para os anjinhos. Mas a malta não era parva e também tinha informadores.
Alguém chegou à "Seara..." com a notícia fresquinha, testemunhada com estes que a terra há-de comer pela equipa que tratava Salazar desde que este falhara a cadeira. Transposto o cepticismo, que o homem parecia eterno, bateram-se palmas e gritou-se Hurra! Hurra! (esta parte do Hurra! Hurra! sou eu agora a inventar).
A minha mãe dirigiu-se ao telefone e telefonou ao meu pai (que já não era hóspede em Peniche): "Prepara uma garrafa de champanhe, hoje temos que comemorar!" No meio da excitação, uma colega, quase tropeçando nos fios, arranca-lhe o bocal do ouvido e acrescenta: "Acabaram as filmagens do Solar das Oliveiras. À noite há festa!"
O meu pai correu à Baixa a comprar uma gravata vermelha. Não chegou a haver arraial. Passado pouco mais de meia hora, a "Seara..." era invadida por agentes da polícia política que solicitam — sem grandes faz favor ou por obséquio — que a minha mãe e a amiga os acompanhem à sede. Os nomes coincidiam rigorosamente com as vozes sob escuta, e acabam as duas nas instalações da PIDE ao Chiado. Verdade seja dita que lhes serviram jantar.
A minha mãe, sempre desconfiada, recusou educadamente o repasto "não fosse aquilo ter para lá alguma droga!" A amiga, alentejana folgazona que hoje seria catalogada de obesa, comeu e apenas não repetiu porque não quis abusar de tamanha hospitalidade.
A minha mãe trejurou um evento sentimental para justificar o champanhe. A amiga disse que sofria de amnésia e que não se lembrava sequer da última vez que tinha ido ao cinema. Entretanto, a minha mãe devia estar com uma fome dos diabos, e foi quando deu entrada em cena o sempre impecável subdirector Sacchetti (ainda vivinho da costa, pelo menos até há bem pouco estava) que se lhe dirigiu com a costumada eloquência: "A senhora não tem vergonha! Ainda agora saiu de cá o marido e nem isso lhe serviu de lição!"
Agit-prop e lições de moral à parte, quem lhes passou a carta de alforria foi ele, não sem antes invocar repetidamente o sagrado nome do falecido, esse "grande homem de quem já sentimos saudades!"
À porta da António Maria Cardoso esperava-as o meu pai, um pequeno saco na mão. Dentro não havia champanhe. Convencido que a madrugada seria longa para a mulher, juntara à pressa algumas mudas de roupa e julgo que uma escova de dentes. Usava a gravata vermelha, o que a minha mãe considerou certamente um repto desnecessário. Depois a amiga disse que nem se comera assim tão mal e foram comemorar na mesma.
Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.

9 comentários:

fallorca disse...

Eu diria, «...mas na altura duvido».

Nuno Dempster disse...

Seria bom que se lembrassem desse tempo difícil e de quem sentia, como parte de si, o dever de revolta. Mas agora o país é dos betinhos democratas com gravata, que logo negarão esse dever se a coisa apertar. Tenha uma boa noite.

Ana Cristina Leonardo disse...

ó fallorca, duvidas?!
nd, muito obrigada. a mãe agradece
:)

rui disse...

Devia ter batido as botas 40 anos antes...somos um país marginal e excluido graças a esse tacanho

fallorca disse...

Loira!!!
«...Isto agora contado tem graça mas na altura imagino.»
Duvido que tivesse qualquer graça. só isso

David Ribeiro (Tovi) disse...

Maravilhoso, como sempre, este seu texto.
Tomei a liberdade de colocar no meu mural do Facebook um link para este seu post.

Ana Cristina Leonardo disse...

Rui, assino por baixo
fallorca, não passas de um peixe loiro que morde todos os anzóis...
:)
David, muito obrigada. a mãe mais uma vez manda agradecer
:)

fallorca disse...

Euuuuuuuuuuuu? Fiufiu...

F disse...

O que falta ao pessoal, hoje em dia, são objectivos consistentes. Anda tudo iludido com a TV, os telemóveis, as férias não sei onde, etc