31/05/10

A book a day keeps the doctor away

John Updike (1932-2009) nunca alcançou em Portugal a notoriedade de um Philip Roth, por exemplo. O que é uma tremenda injustiça. Porque se faltou a Updike o arrebatamento impiedoso de Roth ou de Saul Bellow (para acrescentar outro enorme), tal facto viu-se largamente compensado tanto pela sua paixão pela língua como pela sua inteligência compassiva (esta última, a fazer também a grandeza de Tolstói).
Retratista do universo do meio — da classe média americana que povoa subúrbios enfadonhos e quase sempre medíocres (leia-se o literalmente portentoso Casais Trocados) —, provou-se, desde o início, um estilista de primeira água. Os seus textos são música para os ouvidos e as suas personagens exemplos perfeitos da atenção prestada aos outros (a série balzaquiana dedicada à personagem de Harry "Coelho" Angstrom prova-o à exaustão e é de leitura obrigatória para quem queira perceber a América da segunda metade do século XX).
Crítico, poeta, contista, romancista, o autor da série Coelho… deixou cerca de 60 títulos disponíveis e, como curiosamente resumiu o próprio escritor de Indignação, alheio às comparações, foi e continuará a ser “um tesouro nacional”.
Os 18 contos agora publicados são obra de final de vida e, infelizmente, não mantêm o fulgor estilístico a que nos habituaram os seus textos maiores. Parafraseando Martin Amis que escreveu no “Guardian” sobre As Lágrimas do Meu Pai aquando da sua publicação original em 2009, é como se, com a idade, Updike tivesse perdido o ouvido.
Os temas são identificáveis: memórias de infância, casamentos vergados pelo tempo ou que acabam em divórcio, amigos desaparecidos, isolamento crescente, a morte que se adivinha num horizonte cada vez mais próximo e o sexo que fica cada mais longe.
Naturalmente, uma certa nostalgia envolve esta antologia póstuma e, como sempre, a vida enche-a com as suas banalidades e fragilidades inevitáveis: “O nosso romance [entre ele e a amante] prejudicara-me profissionalmente. Um vendedor de seguros é como um pregador — lembra-nos da morte e deve ser extraordinariamente honesto e virtuoso, como um retorno para o investimento que pede. Como agente de seguros eu havia sido versado e virtuoso a preencher os formulários, mas menos competente a dar a volta aos clientes só para receber comissões. A minha mulher e eu mudámos de estado, para Massachusetts, onde ninguém nos conhecia e eu podia trabalhar com as mãos. Vivíamos lá há uns quinze anos quando me chegou a notícia de Connecticut de que a minha antiga amiga — os longos cabelos espiralados, o sorriso rasgado e luminoso, as mãos esguias e ovaladas — estava a morrer com um cancro nos ovários. Quando morreu, exultei até certo ponto. A sua morte removia do mundo uma presença perturbadora, um sinal do seu potencial por satisfazer. Aí têm. Percebem agora porque não sou dado a introspecções, a escavar muito fundo. Arranha-se a superfície e a fealdade aparece.” (in “O Copo Cheio”).
Tudo continua lá. A beleza das frases, contudo, esmoreceu. Em alguns casos, o seu arrevesamento incomoda demasiado. Aos grandes, porém, tudo se perdoa. A lucidez e a compaixão permaneceram até ao fim e «se consigo ler bem [essa] velha mente, o tipo brinda ao mundo sensível, mandando o seu iminente desaparecimento à fava.”
Afinal, trata-se de Updike, caramba!

John Updike, As Lágrimas do Meu Pai, Civilização Editora, 2010

1 comentário:

henedina disse...

Então eu percebi a América e não gostei de a perceber.