MEDITAÇÃO DE SEXTA: «Semana Negra»

« (...) Havia um bar no rés-do-chão do prédio e entre mim e o bar sobrava um piso de escritórios. Durante algum tempo dirigido por um madrileno, tornara-se local de agradável convívio, os bancos altos do balcão a comporem aquele cenário acolhedor dos filmes onde pontifica um barman camarada, confessor de histórias a quem nunca falta paciência. Tudo mudou quando o madrileno se foi embora e deu lugar a locatários portugueses que se tomavam por aficionados espanhóis da arte tauromáquica. Os agrobetos começavam então a ficar na moda. Eu era, portanto, mais nova.

Espanholadas pimba cresciam noite dentro – quanto mais noite, mais pimba –, os olés eram arrítmicos, o flamenco de contrafacção e as bebedeiras medravam ao ar livre, mesmo por baixo das minhas varandas. Por várias vezes pedi que o entusiasmo tivesse lugar entreportas, de preferência com elas fechadas. Em vão. Jovens atarracados, perna curta e arqueada, pulôveres de cores pastel sobre os ombros e camisas de riscado a deixar à mostra o pelame peitoral assentavam arraiais junto à entrada do meu prédio numa algazarra taurina e fora d’horas a que apenas era poupado o touro por ser imaginário.

Era tarde. Já de pijama e pantufas, um pasodoble varonil insistia em fazer-se ouvir no segundo andar. Reabri as portadas das varandas, olhei para baixo e deparei com uma mancha humana baderneira balançando ao ritmo do álcool. Olhei depois para as minhas plantas. Pensei: “Está na hora de regar as buganvílias”. E assim fiz.

A água desacertou dos vasos para tombar directamente sobre o bestunto dos novilheiros neófitos. Deu-se uma correria atabalhoada para o passeio oposto da rua, como se da fuga a uma largada de touros se tratasse, puseram-se os olhos dos desembestados no alto buscando a origem da nuvem passageira, eu esbocei um sorriso e foi quando ouvi distintamente um deles berrar na minha direcção: “Olha a velha!” (...)»