Numa altura em que em França (às claras) e noutros países (com discrição) se fecham as portas aos desgraçados da Terra, lembrei-me deste episódio a que assisti há muitos anos.
Os mais pobres viajavam, então, de Sud Express.
A emigração a salto ficara para trás, a guerra colonial também, e eles enchiam as aldeias em Agosto.
Desforram-se nos bailaricos, na língua que embasbaca os locais — “foi ali deitar um cu de olho”, querendo dizer un coup d’oeuil —, nas peles nuas e leitosas nunca vistas cumulando de risos piscinas naturais pecaminosas e álgidas, nos encombrants carrões que bloqueiam os rebanhos, nos casebres derribados que dão lugar a maisons imaculadas, babéis de azulejaria e alumínios rascas, obliquidades suíças, colunas e frontões gregos, muito antes de o pós-modernismo ter recuperado o kitsch ou Almodóvar o ter elevado a categoria de culto.
O que mais querem é enterrar a mala de cartão, o trabalho duro do chantier a alombar com cimento, eles.
Elas, mulheres-a-dias
“És portuguesa? Então conheces a Maria!”, e eu: “Não, quem é a Maria?”, e ele: “É a minha bonne!”, diz a criança, cujo mundo se resume ainda ao imobilismo de um pequeno faraó.
Os bidonvilles deram lugar aos HLM (Chelas avant la lettre)
a casa da patroa
— a exemplo da Nação, as portuguesas são humildes e honestas, comentam entre si as madames…
à casa de concièrge, a ascensão possível.
Linda de Suza canta “deux valises en carton sur la terre de France”.
Nos EUA criaram-lhes um museu em Ellis Island: fotografias monumentais, registo da última esperança, rostos cujo olhar explicará muito do futuro da América.
A jovem mulher sentada à minha frente denuncia apenas tristeza e susto. Duas crianças pequenas, um farnel e uma mala amarrada com uma corda. A carruagem leva emigrantes que regressam lá-bas. Homens. Passada a fronteira de Espanha, ela conta que vai à procura do marido: “Deixou de me dar notícias, de me mandar dinheiro…”
Mostra o bilhete de comboio e a última morada. Um dos homens explica-lhe, então, que terá de mudar em Irun. Lá chegados, vêmo-la ficar para trás no cais, as duas crianças pela mão e a mala aos pés. Não fala uma palavra de francês.
“Aquilo, o gajo arranjou outra e já nem mora no mesmo sítio!”, diz um dos homens. Os outros concordam.
Alguém começa a comer uma bifana fria e o cheiro a pobreza cola-se à carruagem.
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4 comentários:
É incrível como há quem não consiga perceber o que exemplificas com este episódio. Levo-te comigo.
Eu era muito imberbe e quando passava junto às valas onde substituíam os esgotos de Paris, tinha uma vergonha horrível que alguém entendesse os «piropos» deles e que eram portugueses. Com o tempo aprendi a traduzir - lá e cá - tanto piropos como casas à la maison com janelas à la fenetre e só fiquei mais triste.
dans la mosca.
Pois... Já agora acrescento que faz-me uma grande confusão a visão da emigração como triste e necessária e a imigração como inaceitável e intrusa. Não são todos "desgraçados da Terra"?
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