Um crítico literário é uma pessoa como as outras. Se
acreditarmos em Empédocles – e não vejo razões para não acreditarmos –, nele se
misturam os quatro elementos constitutivos do mundo – a saber: água, ar, fogo e
terra – tal como acontece a tudo quanto existe no Universo.
Por não ser um ser à parte, encontrando-se, como a
totalidade das coisas existentes, sujeito à Lei do Amor e do Ódio, da União e
da Separação, o crítico literário não tem como fugir à Teoria dos Humores hipocrática. Teremos,
assim, o crítico de temperamento sanguíneo, de temperamento melancólico,
colérico (bilioso) e, finalmente, fleumático.
Num plano ideal, o crítico literário saberá
encontrar o equilíbrio entre estes 4 humores primordiais. Num plano mais ideal
ainda, será capaz de se lançar na cratera do Etna em defesa de um livro.
“O espírito, na verdade, está ansioso, mas a carne é
fraca.” (Mat. 26:41). Assim,
raros são os críticos que alguma vez se lançaram no Etna. Ao invés,
arrebatados pela ignara rebeldia própria das criaturas humanas, muitos são os
que confessam ter cedido à tentação dos versos do poeta: “Ai que
prazer / Não cumprir um dever, / Ter um livro para ler / E não o fazer!”
Pelo seu valor literário, as fraquezas humanas enternecem-me. E
isto vale também para os críticos. Existem, contudo, limites. Um desses
limites, que tenho para mim como axioma, é que um crítico deve, no mínimo, ser
capaz de falar de um livro que não leu.
Sei que a vida está difícil. Não vou armar-me em franciscana
e dizer que dinheiro não tem importância. Nem vou armar-me em wittgensteiniana
e dizer que um ensaio vale um “tuíte”. Concordo que queimar pestanas a ler um volume
denso de mais de 500 páginas devia ser mais valorizado. O facto, porém, é que o
Saul Bellow não tem culpa de a crítica literária ter descido em Portugal ao
nível dos call center.
E nem era preciso ter lido o livro (O Legado de
Humboldt, Saul Bellow, Quetzal) – bastaria talvez ler a contracapa – para saber
que Humboldt nunca esteve “atolado em álcool e dívidas”, nem sofreu nenhum “penoso
processo de divórcio” ou teve “uma amante cara”. Também me parece arriscado
afirmar que “a história de Humboldt tem todos os ingredientes de um thriller
com trânsito por Chicago, Madrid e Paris”, tanto mais que, em 527 páginas, só se
sai, provisoriamente, do “Novo Mundo” na página 440, a 87 páginas do final. Finalmente, bastaria
googlar com mais cuidado, para saber que, n' O Legado de Humboldt, o poeta Delmore Schwartz
não se chama Charlie Citrine, mas precisamente Von Humboldt Fleisher.
O mistério maior para mim, porém, consiste no seguinte: como é que alguém, tendo entre mãos este portento, lhe resiste e o acha ainda assim notável?
Hoje na Sábado escrevo sobre O Legado de
Humboldt, de Saul Bellow
(1915-2005), livro que em 1976 lhe valeu o Pulitzer (ficção) e o Nobel da
Literatura. O romance ficciona a vida do poeta Delmore Schwartz (1913-1966), de
quem a editora Guerra & Paz acaba de publicar a famosa colectânea de contos Nos Sonhos
Começam as Responsabilidades.
Mas pode alhear-se do item Schwartz — que no livro se chama Charlie
Citrine —, porque O Legado de
Humboldt é na realidade um thriller muito bem esgalhado com todos os ingredientes do género (...).
"O leitor pode alhear-se dos envios, que vão de Shakespeare a Edith Sitwell, sem esquecer Diderot, Joyce e outros. Atolado em álcool e dívidas (um penoso processo de divórcio, uma amante cara), a história de Humboldt tem todos os ingredientes de um thriller com trânsito por Chicago, Madrid e Paris. Longe de ser um livro de mexericos, a verrina faz dele um notável romance de ideias."
22 comentários:
Porreiro, porreiro é neste post http://daliteratura.blogspot.pt/2012/04/mia-couto.html, quando o pitta diz que Delmore Schwartz "Convidado habitual da Casa Branca, morreu aos 52 anos na miséria extrema". Na verdade, Delmore Schwatz era frequentador da White Horse Tavern. Hi hi.
Não tinha visto essa pérola. O que faz a mania das grandezas! Mas, a sério, ele confunde tudo. Começando por confundir o Citrine do livro (alter-ego do Bellow) com a personagem que dá título ao livro e, pelos vistos, confundindo o Bellow com o desgraçado do Delmore. Fora de brincadeiras, acho que um tipo que aldrabasse desta maneira num país normal, nunca mais escrevia uma linha de crítica nem num jornal de paróquia. Mas é Portugal, ninguém leva a mal. Nem na crítica, nem no resto.
O P com dois tt nem com molho de tomate, como se dizia no meu falecido país. Comme d’habitude (segundo o léxico do pândego), quer fintar a inteligência de uns quantos. Dava um rico mordomo para o Sócrates, isso, sim. Crítico? Limita-se a contar a história
das histórias que lê, ou lê na diagonal, ou de todo não lê. Porém, faz parte do sistema: é preciso vender cada vez mais porque se compra cada vez menos. O cizentismo dos contadores de histórias sobre histórias aflige. E chamam-lhe crítica. Mas, pronto, é o que há. Dando isso de barato, o que mais me tira a pachorra é medíocres à vista desarmada pavonearem a falta de talento, e o P com dois tt nisso é exímio. E é capaz de ter as razões dele: o mundo acaba-lhe daqui a x anos, há algumas magras sinecuras e a humanidade está cheia pategos que olham o balão.
Emanuel, concordo com tudo e concordo ainda mais com o cizentismo dos contadores de histórias sobre histórias aflige. E chamam-lhe crítica.
Abraço
O mundo está tão abandalhado que o pobre Pitta tem razão em falar da White House Tavern! (Havia uma com esse nome ma África do Sul, mas não se deixariam entrar o Obama).
Isto realmente é de uma desonestidade chocante. Mas o que me parece mais terrível é que ele tem razão na sua consciência da impunidade, na certeza de que pode inventar uma crítica e tem emprego no dia seguinte. É mesmo assim. E é isso que é triste.
Gostei imenso do seu comentário, até porque já tinha também estranhado isto quando li no blog "Da Literatura".
Aproveito esta mensagem para lhe dizer que votei em si quando a revista LER pediu aos seus leitores que nomeassem as pessoas que considerassem mais as influenciasse na leitura porque leio sempre com muita atenção as suas críticas literárias no Expresso e, caso ainda não tenha lido, é certo que livro de que fale bem, eu vou gostar de certeza.
Obrigada.
Anónimo, não sabia que tinha estado a votos na LER. :)
Abraço e muito obrigada pelo seu tão amável comentário. Boas leituras!
essa do CIZENTISMO é que eu também não entendo
não se dirá/escreverá cinzentismo a propósito daquilo que é CINZENTO?
ou trata-se de gralha?
é gralha e copy paste da gralha. combinação explosiva
Estou com o anónimo das 14:33 e digo mais: é a única pessoa neste cesto de críticos, blogues e redes sociais a quem dou mais do que credibilidade, leio os livros que comenta e, porventura, divergindo quanto ao gosto nunca me senti enganada pelas suas apreciações.
Ou seja, «A book a day keeps the doctor away» e vai logo para a minha lista de despesas obrigatórias.
Maria Helena
Maria Helena, muito obrigada. Mesmo.
Abraço
Vá lá, um pouco de panegírico sincero: a Ana Cristina Leonardo transmite sempre o prazer que a leitura lhe proporciona, e fá-lo com naturalidade, sem recorrer a artificialismos pomposos e bacocos. A par do José Riço Direitinho, é, pelo menos para mim, um dos nossos melhores críticos literários.
(quanto a Eduardo Pitta: tendo em conta os textos publicados nos últimos tempos, não há como discordar; porém, considero que já foi melhor, muito melhor)
Carlos, isto hoje é só mimos
bj
PS.: nenhum "melhor" justifica isto
ser uma conjugação de estrelas a teu favor. aproveita! brinco contigo: o elogio foi sincero e merecido.
no que concerne ao teu PS: e quem justificou? não eu. aliás, nem pensava neste episódio em particular, que fala por si, mas, de modo genérico, na qualidade dos textos de crítica literária de Pitta.
Cá por mim voto na Ana (permita-me este trato de quem a lê há algum tempo) no Pedro Mexia e no esfíngico Rogério Casanova/ Maradona.
zélisonda
ETNA!
Anónimo, OBRIGADA!
Estimada Ana,
parece-me que, até pelo facto de EP ser reincidente neste tipo de comportamentos, não estaria mal enviar o que diz ao provedor do leitor da publicação respectiva.
Sempre poderia ser que o cavalheiro fosse finalmente confrontado com a pequenez do seu trabalho.
Caro Platero (de J. R. Jiménez?), estou a ver que os neologismos o enervam. Cinzentismo, eu; googlar, a nossa anfitriã, na sexta linha a contar do final do seu texto. Mas não teceu considerações morfológicas acerca desse verbo. Acho bem. Na casa dos outros temos de ser gentis e, acrescidamente, tratando-se de uma senhora, passe a vénia.Creio que a sua pergunta, Platero, era mais indicada para o Ciberdúvidas. Aí, se não era gralha e respectiva pasta-e-cópia, seria de facto uma combinação pior do que a nitroglicerina. Para sua alegria, afirmo então que a narrativa dos contadores de histórias sobre histórias é um tédio, nomeadamente se escrita pelo Pitta com dois tês e não com dois tt, como escrevi no meu comentário acima, não vá pegar-me por aí.
:)
O sr. Pitta é motivo da minha indiferença relativa à orientação sexual de grupos de pessoas: estou ocupado a embirrar com indivíduos em particular.
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