É algo que já foi mais comum: a reflexão política sobre temas contemporâneos assinada por escritores. O engajamento político (ou mesmo partidário) dos homens de letras foi perdendo peso com o fim da Guerra Fria, acompanhando uma suspeição generalizada pelas ideologias. Martin Amis desconfia das ideologias mas persiste numa tradição que fez a grandeza de alguns e o falhanço de outros tantos.
Os artigos sobre o 11 de Setembro escritos por Martin Amis entre 2001 e 2007 surgem reunidos neste volume sob o título de O Segundo Avião. A estes se acrescentam dois contos: “No Palácio do Fim”, onde o autor de Money imagina a vida dos duplos do filho de um ditador, e um outro que recria “Os Últimos Dias de Muhammad Atta”, terrorista que morreria no embate do primeiro avião com as Torres Gémeas.
As duas ficções optam por encenar escatologias em que a fantasia fecal dá bem ideia do que Amis pensa sobre o assunto: a “bomba na retrete” no caso de “No Palácio do Fim”; “a incontestável fúria das (…) entranhas”, em “Os Últimos Dias de Muhammad Atta”.
As posições do escritor inglês são incómodas. Não poupam ninguém. Não poupam a Al-Qaeda, não poupam bin Laden, não poupam Bush, não poupam Blair, não poupam Chomsky. Para além disso, o homem escreve bem que dói.
“Em Movimento com Tony Blair”, apontamentos de viagens em que o escritor/repórter acompanha o ex-primeiro-ministro, é um tratado de inteligência, ironia e domínio do ofício: “Testemunhamos os discursos triunfais e ouvimos os aplausos, mas normalmente não vemos o momento de feroz deleite político, o profundo e duradouro contentamento da vindicação: eu sempre tive razão! Num outro castelo, o de Hillsborough (o postigo da rainha em Belfast e ocasional lugar de pernoita de Bush), houve outro desses, quando Blair teve uma serena meia hora com o titubeante Teddy Kennedy e o temível Peter Hain. A História — o imprevisto sem remorsos — conspirara por uma vez na vida com o desejo deles, e era tudo muito comedido, neste perdoável regozijo, tudo muito sussurrado e enrouquecido e duramente alcançado.”
Recordamos a escrita viril de Bellow, mestre de Amis, e sentimos uma saudade imensa dos bons textos jornalísticos.
Dez anos passados do 11 de Setembro, O Segundo Avião é a forma adequada de assinalar a data. Submersos pela crise, esse dia parece-nos cada vez mais longínquo e a paranóica War on Terror terá dado lugar a temas mais prementes.
Há, contudo, um antes e um depois do 11 de Setembro — assim como há um antes e um depois da Queda do Muro de Berlim. Amis di-lo com clareza: “O 11 de Setembro deu-nos um planeta que quase nem reconhecemos. Em certo sentido veio revelar o que já ali estava (…) desde o colapso da União Soviética: a inédita preponderância de uma única potência. Revelou também o há muito estabelecido mas crescentemente dinâmico ódio ao Ocidente entre as nações islâmicas, um ódio muito exacerbado pela relação que a América mantém com (…) Israel (…). Além disso, como todos os ‘atos de terrorismo’ — que facilmente e sem subjectividade alguma se podem definir como violência organizada que toma por alvo os civis — (…) foi um ataque à moralidade: sentiu-se um défice geral. Quem é que, a 10 de setembro, esperaria estar pela altura do Natal a ler uns nada escandalizados editoriais no Herald Tribune acerca dos prós e dos contras de se usar a tortura nos ‘combatentes inimigos’? Quem esperaria que a Grã-Bretanha renunciasse à doutrina do não-primeiro-uso do nuclear? O terrorismo mina a moralidade. Além disso, também mina a razão” — sendo próprio da razão distinguir tolerância de relativismo, compreender de aceitar. É isso que Amis faz.
Martin Amis, O Segundo Avião, 2011, Quetzal, trad. de Jorge Pereirinha Pires
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