08/03/11

A book a day keeps the doctor away: "Jerusalém Ida e Volta", Saul Bellow

Nunca a Saul Bellow (1915-2005) poderiam ser atribuídos os versos de Rimbaud: Par délicatesse/ J'ai perdu ma vie.
Polemista, cinco casamentos e entrevistado temível, Bellow foi exuberante na ficção e nas ideias. Restará para sempre como autor do extraordinário Herzog, mas também da pergunta Quem é o Tolstoi dos Zulus? O Proust dos Papuas? Ficaria feliz por poder lê-los, sobre a qual se explicaria mais tarde, classificando o escândalo provocado pela sua inconveniência de jornalístico, dado a frase ter sido retiradado contexto... (Saul Bellow, como Karl Kraus, não era grande admirador de jornalistas).
Israel, por seu turno, não é tema que se chame para a mesa, a não ser que se queira correr o risco de azedar o jantar.
O resultado da combinação do homem e da sua circunstância (no caso, judeu americano em visita à cidade santa das três religiões monoteístas) deu origem a Jerusalém Ida e Volta, um título datado de 1976, já lá vão, portanto, 35 anos, sem que nada de substancial se tenha alterado.
Escreve Carlos Vaz Marques, no Prefácio, que se trata de um livro político. Certamente. Em Jerusalém seria impossível fugir a isso, além de que Bellow não é um viajante qualquer — o seu coração bate por Israel:
Está-se numa cidade como muitas outras — bem, não exactamente, pois das cidades antigas que já visitei Jerusalém é a única em que as antiguidades não são expostas como relíquias, mas têm um uso diário. Ainda assim, é uma cidade moderna com serviços modernos. Fazem-se compras em supermercados, diz-se bom-dia aos nossos amigos pelo telefone, ouvem-se orquestras sinfónicas na rádio. Mas, de repente, a música pára e dá-se a notícia de uma bomba terrorista. Mais uma explosão em frente de um café na Estrada de Jafa: seis jovens mortos e trinta e oito feridos. Angustiados, pousamos a nossa bebida civilizada. Apreensivos, vamos para o nosso jantar civilizado. Por todo o lado, explodem bombas. Em Londres, usou-se dinamite ainda há pouco tempo. A diferença está no facto de, quando explode uma bomba num restaurante do West End, não se pôr em causa o direito fundamental da Inglaterra à existência.”


Se a política é o fio condutor dos vários textos reunidos, o mais interessante é o enorme talento literário de Bellow a transpirar por todos os parágrafos. É difícil resistir a frases como: A polícia devia ser ‘politizada’ e transformada, na medida do possível, num braço paramilitar e guerrilheiro do governo revolucionário, que o escritor de Chicago remata com Isto é leninismo, puro, sem gelo nem aperitivos.
Como na ficção, também aqui Bellow se mostra capaz de acrobacias estonteantes, passando do tema mais árido ou elevado à comicidade mais livre e inesperada: O julgamento moral, um espectro na Europa, metamorfoseia-se num gigante vigoroso quando se fala de Israel ou dos palestinianos. (…) Como a Suíça está para as férias de Inverno e a costa da Dalmácia para o turismo de Verão, Israel e os palestinianos estão para a necessidade de justiça do Ocidente — são uma espécie de estância moral.
A sua discordância de Sartre — explanada com vigor e ironia — beberá muito dessa recusa em deixar-se levar pelo intelectualismo das ideias, fazendo questão de as chamar à terra. Ou como disse de forma definitiva Allan Bloom (que Bellow imortalizaria em Ravelstein, o seu último romance publicado no ano 2000), he has always understood that even if you are on your way from Becoming to Being, you still have to catch the train at Randolph Street.
O livro é, sobretudo, uma colecção de tipos impagáveis, personagens romanescas desenhadas com profundidade, verdade e compaixão (Philip Roth lembrou uma vez que os retratos do escritor estavam na linha de Rembrandt, uma comparação que vale pelo menos dois doutoramentos em Bellow).
Figuras públicas de topo como Teddy Kollek, presidente da Câmara de Jerusalém, Isaac Rabin, Henry Kissinger, Mahmud Abu Zuluf, editor do jornal árabe de maior tiragem em Jerusalém, etc., mas também John Auerbach, marinheiro kibbutznik que acaba de perder o filho, Moshe, massagista competente que gosta de conversar sobre literatura, Meyer Weisgal, octogenário e pioneiro sionista fundador do Instituto de Rehovoth, Dennis Silk, poeta cansado da guerra…


Enquanto se aguarda a tradução de Letters, compilação da correspondência de Bellow publicada no final do ano passado, este livro é um excelente aperitivo. O tema, dramático, não podia ser ao mesmo tempo mais literário, já que é a própria vida, com as suas contradições, paradoxos, crueldade, beleza, desordem e multiplicidade que se joga naquele pequeno pedaço de terra. Ou como se conta na anedota judaica: Deus guiou o povo eleito no deserto durante quarenta anos, para o conduzir ao único lugar do Médio Oriente onde não petróleo.
Alexandra, à data mulher de Bellow, acompanha-o na viagem. Não é judia e atravessa o livro discretamente, sem chegar de facto a entrar nele. Contudo, ainda a caminho de Jerusalém, o diálogo entre ela e o marido diz tudo sobre a tragicomédia do um conflito que teima em não se resolver.
No avião, a abarrotar de ruidosos hassidim, Alexandra comenta: — Eu gosto deles (…) São tão animados, tão infantis. — Viver com eles não te havia de parecer tão fácil (…) — Mas são tão joviais (…). Adoro aquela roupa. Não consegues arranjar um chapéu daqueles? São lindos. — Não sei se os vendem a gentios.
A vida e Bellow no seu melhor.
Tinta-da-China, 2011, trad. Raquel Moura

3 comentários:

James disse...

Quando tiver tempo e paciência, dê aki uma 'vist d'olhos.
O prefácio é do Bellow, o livro é grandito, o Bloom era de direita, mas não se pode fingir que metade do céu não existe

Oferta minha em .pdf
(Claro que tenho o livro, em papel)

Baixar de aki:

http://www.megaupload.com/?d=TVYXIZBC

fallorca disse...

«Como a Suíça está para as férias de Inverno e a costa da Dalmácia para o turismo de Verão, Israel e os palestinianos estão para a necessidade de justiça do Ocidente — são uma espécie de estância moral.»
E estive a olhar para ele na Pó dos Livros; esperava pelo teu anuimento para me arruinar

James disse...

Ah, e não sei como é que esta Barbara se me escapou, estou a gostar muito, deve ser por isso que perco esses festivais da Euro eerm...

Barbara A. Hanawalt - The Middle Ages: An Illustrated History (1999)
Capa:
http://img508.imageshack.us/i/bookcoverwv.jpg

Oxford University Press, ISBN: 0195103599, 160 pagininhas.