22/02/11

Este post não tem que ver com a Líbia embora fale de gás natural

Ontem recebi em minha casa um cavalheiro de sua graça Luís Roque. Não costumo receber às segundas, mas a estridência da campainha obrigou-me a contrariar a regra.
O nome da criatura havia de trazer-me à l’esprit um poema do O’Neill — com o qual passo, aliás, a intervalar o relato dos eventos (não é por acaso que este blogue se chama “Meditação na Pastelaria”).
Dois pontos.

“Que vergonha, rapazes! Nós práqui
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no ‘diz que’
e a desnalgar a fêmea (‘Vist’? Viii!’)

Que miséria meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza…
mas logo desço à rua, encontro o Roque
(‘O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!’)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, sr. O’Neill! E… as varizes?

Cumprido o devaneio poético, esclareço, antes de prosseguir, que o Roque que me bateu à porta em nada se assemelhava ao Roque do poema, com excepção do apelido.
Espécimen actual, robusto e robótico, não apresentava vestígios de varizes e aposto 7 sem trunfos que no seu currículo consta pelo menos uma viagenzita exótica a um sítio com palmeiras.
De ombro na ombreira, anunciou-me que era da Galp Energia e vinha cortar o gás. Apanhada de surpresa, lancei um tímido ora bolas ana cristina e balbuciei faça favor.
Antes de terem inventado a emancipação feminina, talvez pudesse ter simulado um desmaio, pedido um copo de água, fungado com elegância e implorado
— Senhor por quem sois, adiai a vossa vil missão apenas por umas horas…
ou, em alternativa, arriscado um qualquer pedido insólito do género
— Ó! Já que aqui está, dê-me o seu braço e dancemos!
na certeza, porém, que nenhuma das hipóteses teria comovido o meu Roque.
Carrancudo, insensível, quiçá incorruptível (não testei essa parte), pegou na caixa de ferramentas e trancou-me o fornecimento. Estendeu-me o comprovativo e foi-se sem dizer bom-dia.
Mistérios do inconsciente, lembrei-me de Magda Goebbels e ainda pensei gritar-lhe Heil, mein Führer só para o ver tropeçar na escada.
Com começo tão auspicioso, o dia só podia melhorar; contudo, sem querer antecipar o final, posso dizer-vos já que o pior estava por vir.
Dirigi-me aos serviços da Galp Energia, paguei a factura em atraso, marquei a hora da (re)ligação e passei a espera a sonhar com um banho quente.
Por volta das quatro, bateram à porta. O meu coração saltou como o do seminarista do Rimbaud sob a sotaina. Helàs, não era Thimothina Labinette.
Ao ver outra vez o Roque, não tive um achaque mas tive um pressentimento: esta merda vai acabar mal.
Dirigiu-se à cozinha, escusou a minha ajuda, desviou o fogão. Desapareceu na escada. Voltou à cozinha. Perguntou pelo esquentador e desapareceu de novo.
— Já está ligado?, perguntei hesitante quando o vi voltar pela quarta vez mas sem luvas.
Com a cabeça, ou mais apropriadamente dado o calibre do animal, com os cornos enfiados entre papéis, respondeu-me entre dentes que não. O gás ia ficar suspenso porque detectara uma pequena fuga na ligação ao fogão.
Agarrei-me desesperadamente ao adjectivo. A instalação é nova, foi certificada (tive alguma dificuldade em encontrar a palavra e os papéis que a comprovavam), talvez fosse apenas do tubo mal encaixado, uma torneira folgada…
Roque não queria saber de tais miudezas. Não eram da sua conta. E enquanto me estendia um folheto com a lista de empresas certificadas para onde poderia telefonar e um encarte da Comfortline que me garantia na capa que “Para sua Segurança o abastecimento de Gás Natural foi interrompido”, o Roque, indiferente à minha perplexidade, abria um fecho da pasta e dispunha-se a preencher a ficha da vistoria.
— Bom, já que o senhor me está a dizer que vou continuar sem gás, faz favor de me explicar o motivo como se eu fosse muito estúpida.
Foi a vez do Roque ficar perplexo.
— Não estou habituado a que os portugueses duvidem da minha palavra.
— Sou uma céptica, caro Roque, sou uma céptica.
— Já podia ter dito mais cedo.
A contragosto, regressou à escada, desselou a porta da instalação, tornou a montar o aparelho medidor, encaixou no tubo por onde passa o gás uma pêra de borracha que me recordou um clister antigo que havia em casa dos meus avós, e provou-me — com o mesmo ar vitorioso que imagino ter sido o de Hitler quando invadiu a Polónia — que a pressão descia abaixo dos 50.
Fiquei estupidamente na mesma, arrependi-me pela milionésima vez de não ter ido para Ciências, mas senti uma grata satisfação por verificar que havia qualquer coisa no cérebro daquele lobotomizado que ainda mexia: um esgar irritado, um piscar nervoso de olhos, um descontrolo momentâneo nos movimentos.
Quanto à Galp Energia, evitou decerto uma explosão mortífera no meu prédio (apesar de ao meu vizinho de cima ter sido detectado o mesmo problema, nantendo-se, embora, o gás aberto).
No meio disto tudo (tirando os prá i 100 euros que vou ter de largar para me apertarem uma anilha), algo verdadeiramente me encanita: como a Galp Energia não faz vistorias regulares às instalações, mas apenas detecta fugas quando algum cliente se atrasa no pagamento, quem nos garante que um dia destes isto não vá tudo pelos ares, incluindo o Roque?

10 comentários:

Manuel Vilarinho Pires disse...

Vejo que o seu interesse pela temática da energia se mantém!
Deixo-lhe uma modesta sugestão de reflexão para aprofundar o tema...
Quando há uns anos a GDP, então presidida pelo galante Mexia, o único português que consegue disputar ao eloquente Louçã o fascínio da comunicação social, que o(s) trata como uma virgem tremendo de antecipação à aproximação de um capitão Roby, substituiu o gás de cidade pelo gás natural, fez por sua conta a adaptação gratuita dos equipamentos e das instalações dos clientes ao novo gás, porque era a única forma de conseguir dos consumidores de gás de cidade a aceitação da sua substituição pelo gás natural. Quantas fugas, quantas deficiências, quantas situações de risco de acumulação de gases tóxicos, ou mesmo de explosão, foram detectadas nesse processo de conversão massiva? Não sei! No meu prédio, nenhuma! Um bom assunto para a comunicação social investigar...
Uma vez concretizada a conversão por conta da GDP, quantas situações irregulares que levaram ao corte do gás até serem resolvidas (pagando, claro!)? Não sei! No meu prédio, muitas! Ora é a borracha do cano ressequida, ora o raio da curva e a inclinação do exaustor do esquentador que não estão bem, ora é a presença de monóxido de carbono, ora uma fuga entre o contador e os aparelhos que só pode ser reparada através da demolição das paredes, ora etc, etc, etc...
Sorte da GDP, que tudo estava em condições quando a intervenção de conversão foi feita por sua conta, permitindo-lhe fazer a conversão a baixo custo e em tempo record!
Não foi?

Ana Cristina Leonardo disse...

Manuel, o funcionário robótico que me saiu na rifa era um atrasado mental. Quero eu dizer, uma besta.
Quanto à companhia: uma ladroagem a céu aberto.
O mais provável é eu ter um problema com uma anilha, problema que me vai sair pelo preço de um fogão novo.
Senti saudades das bilhas de gás, do senhor da mercearia que as carregava, das gorjetas e até das pequenas transações a encoberto.
Farta deles, Manuel, farta deles!

James disse...

Eu felixmente não vivo em prédio, e essa «coisa» já chegou até aki, porém eu continuo firmemente agarrado às minhas bilhas de gás propano (ou butano ??), e não quero saber se o GDP é mais barato ou o que se lixe, quero é ter controlo sobre a «coisa»...
:-)

James disse...

E tenham cuidado, word is que eles vão inspeccionar nos próximos meses tudo, a torto e a direito (a intenção é boa, agora quanto a resultados concretos não sei...)

João Lisboa disse...

Leopardo, a minha total solidariedade!

1) Já me aconteceu há um ano e tal (quase) o mesmo. A única (e boa) diferença foi que o meu "Roque", após fazer o mesmo exercício de detecção de fugas, decretou que estava tudo como Zeus quer. Mas, de caminho, informou-me de algo que eu desconhecia por completo: de "x" em "x" anos (obviamente, já me esqueci do valor de "x"...), é a nós, consumidores, que compete tratar dessa inspecção, para o que me estendeu o tal folheto com a listinha das empresas que tratam do assunto (cuja lista, ça va sans dire, também já não faço ideia onde pára).

2) A história da instalação do gás natural em Lisboa é daquelas que, quando, um dia, alguém se der ao trabalho de investigar a sério, é bem capaz de valer dois ou três Freeports. Por coisas que vou ouvindo, aqui e ali, aparentemente, a rede de canalização do gás da maioria dos edifícios é uma bomba à espera de explodir a todo o momento. Até já dei umas dicas a quem poderia esgravatar isso com atenção mas, até hoje, népia. Olha, tenta tu, outra vez.

3) É "lobotOmizado". :)

João Lisboa disse...

A1... e "para me apertarem uma anilha" e "eu ter um problema com uma anilha" são expressões que podem ser mal interpretadas, Leopardo...

:)

João Lisboa disse...

Olha, Leopardo, podes abrir aqui um franchise da Pastelaria para ajudar a pagar o gás:

http://lishbuna.blogspot.com/2011/02/allgarve-no-north-side-da-west-coast-of.html

fallorca disse...

A mim pretenderam uma fuga de 70 e tal euros de dívida. Estranhei, liguei... contrariados apertaram a anilha que passou a debitar 5 euros e pouoc.
vão levar na anilha...

trepadeira disse...

Destas coisas de gás natural só conheço aquele que é produzido a partir de "caca".Esse também tem a mesma origem? O gás,claro,a compenhia,sei lá.
Um abraço,
mário

James disse...

Tenho ideia que esse gaz (gás ??) vem da Argélia por umas "condutas" e vaii 'desaguar' a Sines ou lá o que é.
Será por isso que está toda akela gente tão caladinha ???

Nada como as velhas bilhas, e há marcas (BP, GALP, whatever) por onde escolher.