18/11/08

A propósito de andarem por aí uns putos a lançar ovos e outros víveres a representantes do Estado

No meu tempo os estudantes não lançavam produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. No meu tempo eram mais eles a levar com suspensões, expulsões e detenções e, sem querer puxar ao sentimento, com cargas da polícia. Eu própria fui suspensa por três dias, pelo desplante de ter sido colado um cartaz à entrada do meu liceu, convocando uma RGA. A escola paralisou por tão pouco e no dia seguinte fui levada à presença do reitor, não sem antes ter desfrutado dos meus fifteen minutes de fama – contados a partir da saída do comboio até à entrada no estabelecimento: «Foi ela! Foi ela! Foi ela!».
O reitor, com Tomás e Salazar (não me lembro do Caetano…) pairando omniscientes pelo austero gabinete, anunciou que ia chamar o meu pai. O meu pai tinha estado preso em Peniche e não simpatizava com nenhum dos retratados. Assim, o insolente à-vontade com que retorqui à autoridade: «Então, chame!» nada transpirava de heróico. O meu pai, quando eu lhe disse: «Fui suspensa!», disse: «Grande filha!». E abraçou-me.
Nem todos os finais se mostravam tão ditosos. Havia quem, devido às suspensões, perdesse o ano por faltas, e havia quem fosse logo para a rua sem castigos intercalares. Também havia prisões. Uma vez foram presos 150 de uma vez só, no Hospital Santa Maria. Eu, com a minha proverbial incapacidade para lidar com a british punctuality, atrasei-me. Quando, ofegante, lá vislumbrei Económicas, para onde fora marcada inicialmente a reunião, verifiquei ser muito tarde para ir a Medicina.
Não fui e não fui dentro, mas recordo muito bem os rapazes de cabelo rapado à escovinha, um corte que lhes fora gentilmente ofertado pelo barbeiro das caves do Governo Civil. As raparigas não denunciavam quaisquer sinais exteriores e muitos dos rapazes optaram por usar gorros na cabeça – estávamos no Inverno de 1973.
Não posso garantir que Bárcia, o nosso bufo exclusivo, tenha sido engavetado na altura. Julgo que sim. Era um sujeito curioso. Magro, alto, de orelhas caracteristicamente afastadas, usava gabardines à pide, indumentária à qual se referia de modo jocoso, sublinhando que parecia mesmo um. A carreira dele teve um final burlesco.
Já depois do 25 de Abril, a mãe contactou ex-colegas dizendo-lhes que, incompreensivelmente, o filho tinha sido detido. Apressámo-nos a acalmá-la, alvitrando que fora o caso de um engano: perante os documentos incriminatórios, que incluíam os nomes da estudantada escarrapachados em relatórios escritos de motu proprio, ainda hoje estou para saber se alguém teve coragem de telefonar à senhora.
Avistámo-lo depois, bastante mais tarde, à saída de um velório na Basílica da Estrela. Num mini a cair de podre, encetou-se uma perseguição ao Bárcia pelas ruas de Campo de Ourique, mas acabámos por lhe perder o rasto ali para os lados do Canas.
Éramos putos. Não lançávamos, industriados por obscuros «adversários da política educativa do Governo», produtos comestíveis a ministros e secretários de estado. Fazíamos outras coisas. E que não se me leve a mal a pergunta: o que fariam em jovens a digníssima ministra da educação e seus inefáveis secretários?

11 comentários:

Anónimo disse...

Aguardo, com indesmentível emoção, o desenvolvimento dos próximos comentários.
De momento, encontro-me a enrolar um cigarrinho e à espera que me sirvam a bica.
Num sinibam, caraças!

Anónimo disse...

"O meu pai, quando eu lhe disse: «Fui suspensa!», disse: «Grande filha!». E abraçou-me."

ah ah ah! Uma família de terroristas.

Ana Cristina Leonardo disse...

manuel, não se deve confundir terrorismo com mau feitio...

-pirata-vermelho- disse...

Não s'iniba, caraças, Ana Cristina.
São históricas as situações que descreve com tanta graça.

Anónimo disse...

Esse mau feitio também eu queria ter...

Popelina disse...

adorei!

João Lisboa disse...

Leopardo... tens de arranjar uma maneira de contar "a do arroz doce"...

Ana Cristina Leonardo disse...

acho que vou publicar as minhas memórias no blogue... doente e falida, tem-me dado pró sentimento. já estou melhor obrigada, mas parece-me que lhe tomei o gosto. prometo continuar

Anónimo disse...

Prometeste, livra-te se paras, se não continuas, se te inibires, se sei lá o quê... fiufiufiu

Ana Cristina Leonardo disse...

pirata-vermelho,é que tinha mesmo graça, pelo menos até os tipos chegarem à parte da revolucionarização...
rui g., nos tempos que correm, como diz uma amiga minha, basta ter feitio, qualquer que ele seja, para arranjar chatices...
popelina, seja bem-vinda à pastelaria
joão, só me lembro do arroz doce gamado na cantina de ciências durante a noite; lembro-me de uma história de alguém que ficou preso lá dentro... recorda-me lá porra! a constipação anda a afectar-me os neurónios.
fallorca, fiufiufiu é como eu ando...

Anónimo disse...

Desculpe-me aborrecê-la. mas quanto mais leio o seu diário mais gosto de o ler, parabéns, é uma maravilha.
Obrigada!