« (...) se Dantas e Albino se foram e Ângelo e o Manifesto… ficaram, assiste-se actualmente a um movimento em crescendo em defesa de uma “arte sã” produzida por “artistas virtuosos”, numa espécie de reedição esteticamente alargada do dito latino mens sana in corpore sano. Enquanto isso, e em paralelo, vai-se esboroando o êxtase material (para roubar a expressão ao Nobel da literatura J.M.G. Le Clézio, melhor ensaísta do que ficcionista, se me é permitido dizê-lo), o virtual em alta, como se pôde comprovar com a pichagem feita há semanas no polémico Padrão dos Descobrimentos em Belém, onde o anticolonialismo se exprimiu invocando, não Mandela, Amílcar Cabral ou Agostinho Neto (por exemplo), mas Black Panther: Wakanda Forever, um filme de 2022 produzido pela Marvel Studios.
« (...) Ainda me lembrei da alfarrobeira, árvore que assombrosamente casa rusticidade com o aveludado das folhas e o perfume voluptuoso das vagens e que, antecedendo o mar em direcção ao Sul, tão bem revela esse “Algarve impressionista e mole” sobre o qual versejava o poeta João Lúcio. Fugaz lucubração. Depressa abandonado o lirismo e abraçado de pronto o realismo, ocorre-me a crueza da seca, as azeitonas queimadas pelo sol no topo das oliveiras e as uvas pendendo murchas pelos muros, alguns preservando ainda a brancura primitiva da cal. Ah! O calor! A alegria dos banhistas e o tormento dos campos.
«(...) Os franceses puxam pelo vinho (e pelos queijos e pelo champanhe e etc.) em séries policiais. Passeiam-se por França e vão cometendo e desvendando homicídios enquanto aproveitam para nos mostrar as riquezas e belezas do terroir. Os enredos são sempre fracos, mas as paisagens são boas. Não consta que o façam no Eliseu a 14 de Julho, o dia da queda da Bastilha e da Festa Nacional. Joyce é homenageado na Irlanda (e fora do país) na figura da sua personagem mais famosa, Leopold Bloom, o protagonista de Ulisses. No Bloomsday, assinalado a 16 de Junho, bebe-se muito (em geral, bebe-se muito na Irlanda), mas o centro das festividades é mesmo a literatura, embora regada a whiskey (não ofender os locais confundindo whiskey com whisky).
«(...) Décadas a pregar a inteligência emocional – seja lá isso o que for –; elevação ao primeiro lugar do pódio da famigerada empatia – a palavra compaixão caída em desgraça sabe-se lá porquê –; milhares de talks e papers sobre liderança (leio, escrito por alguém que se identifica como Talent Manager: “Ser líder significa ser humano”, e logo me ocorre um impropério que uma esmerada educação me impede de partilhar…); linguagem cada vez mais açucarada – trabalhador/colaborador, patrão/investidor, despedir/flexibilizar, pobre/carenciado, etc., etc. – enquanto, ao mesmo tempo, o mundo se vai tornando cada vez mais competitivo, afunilado, vertiginoso.
«(...) por cá, um pouco enfastiados com a sucessão de novelas político-ó-partidárias sem esquecer o futebol, preocupou-nos sobremaneira o imposto sobre o valor acrescentado taxado às meloas e melancias. A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) veio esclarecer que estão as primeiras isentas de IVA, ao contrário das segundas. Porquê? Porquê? Clamaram os portugueses, arrepanhando os cabelos e acrescentando, qual senhor Seixas na fita O Pai Tirano: “Ó inclemência! Ó martírio! Estará porventura periclitante a saúde dessa nobre medida, o IVA Zero, que tanto o nosso Governo ajudou a criar?”.