MEDITAÇÂO DE SEXTA: «Crónica que era para ser do não»
« (...) Ainda me lembrei da alfarrobeira, árvore que assombrosamente casa rusticidade com o aveludado das folhas e o perfume voluptuoso das vagens e que, antecedendo o mar em direcção ao Sul, tão bem revela esse “Algarve impressionista e mole” sobre o qual versejava o poeta João Lúcio. Fugaz lucubração. Depressa abandonado o lirismo e abraçado de pronto o realismo, ocorre-me a crueza da seca, as azeitonas queimadas pelo sol no topo das oliveiras e as uvas pendendo murchas pelos muros, alguns preservando ainda a brancura primitiva da cal. Ah! O calor! A alegria dos banhistas e o tormento dos campos.
Mas chega de agricultura!, pensei, tentando passar ao capítulo seguinte, o que havia de me conduzir a Flaubert e ao impagável "Bouvard e Pécuchet", os dois manga-de-alpaca cansados de Paris admirando com urgência, noite cerrada, velas em riste, as maravilhas da horta – “Olha: cenouras! Ah!, couves!” –, para logo saltarem das couves e das cenouras para a química, a teologia, para a medicina, filosofia, espiritismo, história, astronomia, numa busca pela verdade que termina – sem término: o livro seria interrompido pela morte de Flaubert – por não ser mais do que uma brilhante exposição da tolice humana que, como se sabe, é interminável. Não sei se não devemos voltar ao lugar onde fomos felizes; sem dúvida devemos voltar aos livros que nos fizeram felizes.»
Não, devemos voltar às sombras das árvores, para ler livro nenhum.
ResponderEliminarPior: devemos voltar à sombra das árvores, apenas pela sombra das árvores.
EliminarAinda pior: já não consigo sentir “o aveludado das folhas”, mas talvez ainda me incomode o perfume urgente da época de acasalamento.
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