A 21 de Janeiro passado, Bento XVI anunciou o «perdão pontifício» a quatro bispos ultra-conservadores da congregação fundada por Marcel Lefebvre, um deles, o revisionista inglês dos quatro-costados Richard Williamson (ao centro, na fotografia), cujas recentes declarações em entrevista televisiva (que pode ser vista aqui) não deixam margem para dúvidas: as câmaras de gás nunca existiram e, logo, a bem da lógica, nenhum judeu ou cigano lá morreu.
Era o meu hotel. Acabámos a partilhar um táxi – eu, ela e o marido – e nessa noite fico a saber que são ambos filhos de judeus polacos que sobreviveram fugindo para a zona de ocupação russa. Quase toda a família que ficara na parte anexada pela Alemanha em 1939 morrera no campo de concentração e extermínio de Auschwitz. Aqui a «solução» foi praticamente final: dos cerca de 3 milhões de judeus que viviam na Polónia antes da guerra, restavam 100 mil em 1945.
A caminho do Campo. O guia polaco vai calado junto ao condutor. Antes da partida fizera questão de contar uma piada que adivinho da praxe, recolhidos nos vários hotéis os participantes do tour: «Este autocarro dirige-se a Auschwitz-Birkenau. Aos passageiros que quiserem descer é dada agora uma última oportunidade», e seguiram-se alguns risos de circunstância.
Vieram certos cérebros mais papistas do que o papa justificar o injustificável (a própria Igreja incomodada com o assunto), vendo na medida mais uma prova da suprema inteligência e clarividência de Ratzinger que, indiferente às reacções exteriores (esclareça-se: todos os que defendem o respeito pelos factos históricos e não apenas a comunidade judaica...), se preocupou em primeiro lugar com a unidade da família católica, pondo fim ao Cisma que a dividia. Aceitando eu que no caso de José Sócrates se possa vir lembrar que a família não se escolhe, neste o argumento não colhe. Porque, mesmo e precisamente, a Igreja não tem de incluir bispos pedófilos, racistas ou negacionistas (tal e qual como não inclui padres mulheres). E, especialmente dedicado a Williamson, reedito um texto que aqui deixei há mais ou menos um ano:
ISTO FOI O QUE EU VI EM AUSCHWITZ*
«Faz muito frio em Auschwitz», dirá depois a mulher israelita com quem me cruzei na estação de caminhos-de-ferro de Cracóvia. Aproximando-se com um papel na mão, pergunta-me num inglês áspero se poderei ajudá-la. «Também sou estrangeira», respondi-lhe, e ela continuou a tentar junto à fila do guichet de informações: «Desculpe, sabe dizer-me onde fica o Hotel Chopin?»Era o meu hotel. Acabámos a partilhar um táxi – eu, ela e o marido – e nessa noite fico a saber que são ambos filhos de judeus polacos que sobreviveram fugindo para a zona de ocupação russa. Quase toda a família que ficara na parte anexada pela Alemanha em 1939 morrera no campo de concentração e extermínio de Auschwitz. Aqui a «solução» foi praticamente final: dos cerca de 3 milhões de judeus que viviam na Polónia antes da guerra, restavam 100 mil em 1945.
A caminho do Campo. O guia polaco vai calado junto ao condutor. Antes da partida fizera questão de contar uma piada que adivinho da praxe, recolhidos nos vários hotéis os participantes do tour: «Este autocarro dirige-se a Auschwitz-Birkenau. Aos passageiros que quiserem descer é dada agora uma última oportunidade», e seguiram-se alguns risos de circunstância.
A viagem é monótona. Depois de Cracóvia, árvores. Árvores e mais árvores. Despidas e de ramos suplicantes. Aldeias desertas e mais aldeias desertas. Uma película viscosa, cinzenta e triste, adere ao céu e à paisagem. Chove. Estamos na estrada há cerca de uma hora. À vista de um entroncamento ferroviário adensa-se o silêncio dentro do autocarro, apenas interrompido pelo ronronar do motor. Todos parecem aguardar o pior. Mas ainda falta.
As árvores austeras dão por vezes lugar a florestas sombrias a que se sucedem planícies cultivadas e mais tarde, colado a Birkenau, ao fundo, depois da cerca de arame farpado, hei-de avistar um outro campo igual, de terra arada e duas casas. Todos os dias os habitantes das casas olham a cerca. Provavelmente, não a vêem. Está ali há mais de 60 anos. Uma coisa com mais de 60 anos, se se mantiver imóvel e inalterável passa a ser invisível. A física não explica isto mas é assim.
As árvores austeras dão por vezes lugar a florestas sombrias a que se sucedem planícies cultivadas e mais tarde, colado a Birkenau, ao fundo, depois da cerca de arame farpado, hei-de avistar um outro campo igual, de terra arada e duas casas. Todos os dias os habitantes das casas olham a cerca. Provavelmente, não a vêem. Está ali há mais de 60 anos. Uma coisa com mais de 60 anos, se se mantiver imóvel e inalterável passa a ser invisível. A física não explica isto mas é assim.
O guia informa agora que chegaremos dentro de pouco mais de 15 minutos e que a agência responsável pelo tour oferece um desconto de 20% no caso de uma segunda visita. No regresso explicará que também organizam idas às minas de sal de Wielicka e às montanhas Tatra, tudo muito perto de Cracóvia e a preços acessíveis: «Podem consultar os folhetos».
«Leve um casaco, faz muito frio em Auschwitz», disse a mulher israelita. No dia seguinte será pior. Volto de comboio e chego a Birkenau muito cedo. O local está praticamente deserto e ouve-se o barulho dos cortadores da erva. Do topo da torre de vigia principal, à entrada, avista-se a simetria desmesurada do campo de extermínio. Quase nada resta, mas ainda assim faz muito medo.
«Queria ir a Auschwitz», confesso em tom sumido ao recepcionista do hotel. Chegara a meio da tarde e andara pelas ruas de Cracóvia a confirmar que se trata de uma cidade belíssima, poupada pela guerra. O pudor não me deixara ainda pronunciar a palavra. Quero saber como chegar de comboio a Auschwitz. «De comboio?!», e num golpe de magia salta sobre o balcão um folheto de excursões organizadas. «We have a very good tour to Auschwitz. Sai daqui às 9 horas, por volta das três e meia está de volta». Mostra-me o programa e, porque insisto no comboio, a contragosto consegue-me os horários. Já no quarto, telefono a informar que afinal mudei de ideias; se me pode incluir na lista do dia seguinte: «Nesse caso, terá de vir à recepção pagar o bilhete agora». Passa da meia-noite e a conversa com o recepcionista arrumara-me com o pudor. Apetece-me perguntar-lhe se tem viagens com pacote de almoço e bebidas incluído.
Durante os anos de 1940-45, o número de vítimas do campo de concentração e extermínio de Auschwitz é calculado entre 1.100.000 e 1.500.000 pessoas, 90% das quais de origem judaica, a maior parte morta imediatamente à chegada, nas câmaras de gás. A plataforma de desembarque, onde os médicos SS seleccionavam os «aptos» e os «inaptos» (selecção a que só os judeus se sujeitavam), ficava em Birkenau. Os carris continuam lá.
Quando, arrematada a excursão, acabo mesmo por voltar sozinha de comboio, dirijo-me directamente a Birkenau (conhecido como Auschwitz II). À saída pergunto a direcção para Auschwitz (I). Os restos dos carris, passados 60 anos da libertação do campo, separaram-se da estrada ocultos entre veredas bucolicamente cobertas de plantas e flores silvestres e não servem de referência. Explicam-me que terei de descer até uma pequena ponte e virar à esquerda. São cerca de quatro quilómetros que percorro sob uma chuva intermitente e fria e que me levam a Oswiecim, o nome polaco da localidade a que os alemães chamaram Auschwitz. À época do nazismo, o percurso era inverso e de sentido único: vinha-se para Birkenau para morrer.
«Queria ir a Auschwitz», confesso em tom sumido ao recepcionista do hotel. Chegara a meio da tarde e andara pelas ruas de Cracóvia a confirmar que se trata de uma cidade belíssima, poupada pela guerra. O pudor não me deixara ainda pronunciar a palavra. Quero saber como chegar de comboio a Auschwitz. «De comboio?!», e num golpe de magia salta sobre o balcão um folheto de excursões organizadas. «We have a very good tour to Auschwitz. Sai daqui às 9 horas, por volta das três e meia está de volta». Mostra-me o programa e, porque insisto no comboio, a contragosto consegue-me os horários. Já no quarto, telefono a informar que afinal mudei de ideias; se me pode incluir na lista do dia seguinte: «Nesse caso, terá de vir à recepção pagar o bilhete agora». Passa da meia-noite e a conversa com o recepcionista arrumara-me com o pudor. Apetece-me perguntar-lhe se tem viagens com pacote de almoço e bebidas incluído.
Durante os anos de 1940-45, o número de vítimas do campo de concentração e extermínio de Auschwitz é calculado entre 1.100.000 e 1.500.000 pessoas, 90% das quais de origem judaica, a maior parte morta imediatamente à chegada, nas câmaras de gás. A plataforma de desembarque, onde os médicos SS seleccionavam os «aptos» e os «inaptos» (selecção a que só os judeus se sujeitavam), ficava em Birkenau. Os carris continuam lá.
Quando, arrematada a excursão, acabo mesmo por voltar sozinha de comboio, dirijo-me directamente a Birkenau (conhecido como Auschwitz II). À saída pergunto a direcção para Auschwitz (I). Os restos dos carris, passados 60 anos da libertação do campo, separaram-se da estrada ocultos entre veredas bucolicamente cobertas de plantas e flores silvestres e não servem de referência. Explicam-me que terei de descer até uma pequena ponte e virar à esquerda. São cerca de quatro quilómetros que percorro sob uma chuva intermitente e fria e que me levam a Oswiecim, o nome polaco da localidade a que os alemães chamaram Auschwitz. À época do nazismo, o percurso era inverso e de sentido único: vinha-se para Birkenau para morrer.
O portão onde se inscreve a frase «Arbeit macht frei», milhões de vezes fotografado, torna-se insignificante quando comparado com o amplo parque de estacionamento junto à entrada, transbordando de camionetas, táxis e ruidosos grupos de visitantes de cujo roteiro turístico faz parte um desvio pelo local.
O tour do primeiro dia, embora rápido, incluíra os marcos mais terríveis do campo, do temível Bloco XI, com o muro de fuzilamento e as celas de tortura, ao crematório I, inaugurado por um grupo de prisioneiros soviéticos, cobaias do Zyklon B, o gás com que os nazis levariam a cabo a «Solução Final».
No Bloco IV expõem-se os despojos. Aquando da Libertação, as tropas soviéticas encontraram pilhas de roupa, loiça, sapatos, malas (onde os proprietários deixaram escritos os nomes, estratégia de engano que convencia os recém-chegados de que as poderiam recolher mais tarde…), óculos, próteses, fotografias de família anónimas cujos retratados nunca mais se haveriam de rever…
Numa vitrina amontoam-se latas usadas do mortífero Zyklon B, noutra tranças e restos de cabelo humano amarelecidos pelo tempo – uma pequena amostra das sete toneladas que os SS deixaram para trás e que deveriam ser exportadas para a Alemanha onde se transformariam em mantas, recheio para travesseiros, forros de casacos, edredões...
Um ser humano dificilmente suporta tamanha realidade. Saio para o ar livre. Eu e uma americana de idade avançada. Cá fora, prestes a acender um cigarro, somos interpeladas por uma religiosa que passa e nos lembra, sorriso rasgado, que «is not allowed to smoke in Auschwitz». Mudas e cúmplices, aspiramos o fumo bem até às entranhas. [A velha americana há-de mais tarde assustar-me (eu distraída) ao repetir-me à orelha, voz cava e grossa: «is not allowed to smoke in Auschwitz!!!». E rimo-nos.]
Não é esta a única freira com que me cruzo. Há muitas por aqui. E num terreno contíguo, o do edifício onde as carmelitas se instalaram em 1894, ergue-se uma cruz alta de seis metros, a que resta da acesa polémica que rodeou a colocação de mais de uma centena de cruzes em Auschwitz, em 1982. Na altura, o anti-semitismo renasceu nas palavras do líder da chamada Associação das Vítimas da Guerra, Mieczyslaw Janosz, um ex-polícia corrupto que se opôs vigorosamente à remoção dos crucifixos. Os símbolos cristãos foram retirados (excepto o referido), e as carmelitas partiram. Para um olhar atento, a tentativa de cristianização do local não passa despercebida.
O tour do primeiro dia, embora rápido, incluíra os marcos mais terríveis do campo, do temível Bloco XI, com o muro de fuzilamento e as celas de tortura, ao crematório I, inaugurado por um grupo de prisioneiros soviéticos, cobaias do Zyklon B, o gás com que os nazis levariam a cabo a «Solução Final».
No Bloco IV expõem-se os despojos. Aquando da Libertação, as tropas soviéticas encontraram pilhas de roupa, loiça, sapatos, malas (onde os proprietários deixaram escritos os nomes, estratégia de engano que convencia os recém-chegados de que as poderiam recolher mais tarde…), óculos, próteses, fotografias de família anónimas cujos retratados nunca mais se haveriam de rever…
Numa vitrina amontoam-se latas usadas do mortífero Zyklon B, noutra tranças e restos de cabelo humano amarelecidos pelo tempo – uma pequena amostra das sete toneladas que os SS deixaram para trás e que deveriam ser exportadas para a Alemanha onde se transformariam em mantas, recheio para travesseiros, forros de casacos, edredões...
Um ser humano dificilmente suporta tamanha realidade. Saio para o ar livre. Eu e uma americana de idade avançada. Cá fora, prestes a acender um cigarro, somos interpeladas por uma religiosa que passa e nos lembra, sorriso rasgado, que «is not allowed to smoke in Auschwitz». Mudas e cúmplices, aspiramos o fumo bem até às entranhas. [A velha americana há-de mais tarde assustar-me (eu distraída) ao repetir-me à orelha, voz cava e grossa: «is not allowed to smoke in Auschwitz!!!». E rimo-nos.]
Não é esta a única freira com que me cruzo. Há muitas por aqui. E num terreno contíguo, o do edifício onde as carmelitas se instalaram em 1894, ergue-se uma cruz alta de seis metros, a que resta da acesa polémica que rodeou a colocação de mais de uma centena de cruzes em Auschwitz, em 1982. Na altura, o anti-semitismo renasceu nas palavras do líder da chamada Associação das Vítimas da Guerra, Mieczyslaw Janosz, um ex-polícia corrupto que se opôs vigorosamente à remoção dos crucifixos. Os símbolos cristãos foram retirados (excepto o referido), e as carmelitas partiram. Para um olhar atento, a tentativa de cristianização do local não passa despercebida.
São cinco da tarde e os sinos tocam a rebate. Embora a hora de fecho seja às seis, um grupo de japoneses toma os sinos pelo sinal de encerramento e começa a dirigir-se apressadamente para a saída. Outros visitantes põem-se a correr na direcção do som, tentando perceber o que se passa.
«Why-the-bells-are-ringing?», insisto pela terceira ou quarta vez junto de uma funcionária que simula não me perceber. Finalmente consigo que me expliquem, a contragosto, que o som vem de uma igreja próxima. Fazem questão de sublinhar, «fora do recinto do museu».
A polémica sobre a cristianização de Auschwitz não é de agora. A canonização de Maximilian Kolbe (1982) e Edith Stein (1998) pelo Papa João Paulo II já tinha provocado reparos da comunidade judaica internacional. O primeiro, um padre franciscano que trocou a sua vida em Auschwitz pela de um outro condenado polaco (Franciszek Gajowniczek), fora responsável por uma importante publicação católica em cujas páginas se liam artigos anti-semitas; Edith Stein, filósofa alemã convertida ao cristianismo nos anos 20, tornar-se-ia freira carmelita e acabaria gaseada em Auschwitz juntamente com a irmã, embora, naturalmente, não por ser freira católica mas por ser judia.
Nas palavras do rabino Leon Klenicki, um homem que se tem debruçado sobre o relacionamento actual entre as duas religiões, «prestar homenagem ao sofrimento cristão só é aceitável se isso não servir para negar a realidade de que o Holocausto foi essencialmente um programa de extermínio do povo judeu». Ou, como afirmou de modo definitivo o escritor e sobrevivente espanhol Jorge Semprún, e para acabar de vez com a ignóbil contabilidade dos cadáveres:
A polémica sobre a cristianização de Auschwitz não é de agora. A canonização de Maximilian Kolbe (1982) e Edith Stein (1998) pelo Papa João Paulo II já tinha provocado reparos da comunidade judaica internacional. O primeiro, um padre franciscano que trocou a sua vida em Auschwitz pela de um outro condenado polaco (Franciszek Gajowniczek), fora responsável por uma importante publicação católica em cujas páginas se liam artigos anti-semitas; Edith Stein, filósofa alemã convertida ao cristianismo nos anos 20, tornar-se-ia freira carmelita e acabaria gaseada em Auschwitz juntamente com a irmã, embora, naturalmente, não por ser freira católica mas por ser judia.
Nas palavras do rabino Leon Klenicki, um homem que se tem debruçado sobre o relacionamento actual entre as duas religiões, «prestar homenagem ao sofrimento cristão só é aceitável se isso não servir para negar a realidade de que o Holocausto foi essencialmente um programa de extermínio do povo judeu». Ou, como afirmou de modo definitivo o escritor e sobrevivente espanhol Jorge Semprún, e para acabar de vez com a ignóbil contabilidade dos cadáveres:
«Existe, com efeito, uma confusão antiga, amiúde fruto da ignorância, ou talvez de um pensamento equívoco ou malévolo, entre a deportação de inimigos do nazismo – alemães anti-hitlerianos, resistentes europeus – e o extermínio de judeus e ciganos. Os primeiros foram detidos e deportados pelos seus actos, quaisquer que fossem as suas origens sociais ou a sua religião. Os segundos são exterminados por serem o que são, mesmo que nunca tenham cometido um acto ou um mero gesto de oposição ao regime. A diferença, mesmo que o número de mortos resistentes fosse comparável ao dos judeus exterminados – e não o é, de forma alguma –, não é uma diferença quantitativa: é ontológica.»
Também por isto é difícil aceitar que em Auschwitz, onde o extermínio dos judeus atingiu o paroxismo, os únicos nomes referidos durante a visita guiada sejam os do padre Kolbe, Edith Stein e Stefan Jasienski (um prisioneiro da cela 21 do Bloco 11 que se supõe ser o autor do crucifixo e do Cristo gravados na parede que, vivamente, nos recomendam que olhemos). Como também se considera excessivo que no curto filme que se mostra aos visitantes se inclua uma missa católica e se perca a conta às religiosas cristãs e às cruzes.
Também por isto é difícil aceitar que em Auschwitz, onde o extermínio dos judeus atingiu o paroxismo, os únicos nomes referidos durante a visita guiada sejam os do padre Kolbe, Edith Stein e Stefan Jasienski (um prisioneiro da cela 21 do Bloco 11 que se supõe ser o autor do crucifixo e do Cristo gravados na parede que, vivamente, nos recomendam que olhemos). Como também se considera excessivo que no curto filme que se mostra aos visitantes se inclua uma missa católica e se perca a conta às religiosas cristãs e às cruzes.
«Ninguém vai a Treblinka», resume o jovem inglês que encontro na estação de Oswiecim, onde somos os únicos a aguardar o comboio de regresso a Cracóvia. Quanto a Auschwitz, o comentário é lacónico: «Too much noise.» De facto, há demasiado barulho por aqui.
Não em Birkenau, onde menos sobem e cuja desmesura assusta, a maior parte dos visitantes limitando-se às poucas barracas que sobram à entrada e a espreitar o campo do alto da torre de vigia. Desolação podia ser a palavra que define este campo de morte, onde os Blocos são nauseabundos e as ruínas dos crematórios se escondem ao longe, por entre árvores e erva fresca. Uma terra aparentemente igual a qualquer outra, mas regada a cinzas. É aí, junto ao Crematório II, não longe do local da revolta do Sonderkommando, que avisto cabriolando por entre arbustos uma jovem corça, indiferente aos delírios dos homens e à maldição do lugar, a que também parece indiferente, embora sem o álibi da inocência, a nova-iorquina saída directamente de um filme de Allen que clama a plenos pulmões não se conformar com o facto de não ter encontrado a escultura – «God! Uma madonna belíssima!» – que uma amiga tinha feito «expressamente para oferecer aos judeus».
Não em Birkenau, onde menos sobem e cuja desmesura assusta, a maior parte dos visitantes limitando-se às poucas barracas que sobram à entrada e a espreitar o campo do alto da torre de vigia. Desolação podia ser a palavra que define este campo de morte, onde os Blocos são nauseabundos e as ruínas dos crematórios se escondem ao longe, por entre árvores e erva fresca. Uma terra aparentemente igual a qualquer outra, mas regada a cinzas. É aí, junto ao Crematório II, não longe do local da revolta do Sonderkommando, que avisto cabriolando por entre arbustos uma jovem corça, indiferente aos delírios dos homens e à maldição do lugar, a que também parece indiferente, embora sem o álibi da inocência, a nova-iorquina saída directamente de um filme de Allen que clama a plenos pulmões não se conformar com o facto de não ter encontrado a escultura – «God! Uma madonna belíssima!» – que uma amiga tinha feito «expressamente para oferecer aos judeus».
Os fotógrafos amadores invadem Auschwitz, procurando enquadramentos perfeitos junto às cercas de arame farpado para o recuerdo de grupo. Há gente que passa apressada, turistas do horror que acrescentam a visita do campo ao currículo. E depois há os outros. Os que escondem as lágrimas sob óculos de sol em dia de chuva. Os que entram e saem sem dizer palavra. Ou os sobreviventes.
Eu vi-o em Auschwitz, velho e magro, apoiado numa bengala, e adivinhei-lhe a origem pela forma como andava por ali, alguém que regressa a uma casa em ruínas à qual reconhece os cantos. Voltei a encontrá-lo por acaso em Kazimierz, o bairro judaico de Cracóvia, quando procurava a sinagoga Izaak, uma das oito sinagogas que voltaram entretanto a abrir portas. Ele disse: «Aqui era um bairro judeu». Eu disse: «Vi-o ontem em Auschwitz». Ele disse: «É possível. Uma irmã minha morreu lá em 19..., outra em 19...». Esqueci os nomes e as datas. O olhar dele era tranquilo, a voz amável, o pulso tatuado. Não consegui dizer mais nada. Fugi por vergonha de sentir uma dor que não me pertencia.
Talvez o mesmo tenha se tenha passado com Patrícia, do Porto, Portugal, que deixou escrito no livro de visitas do Pavilhão da Checoslováquia, em Auschwitz: «9 de Maio de 2005. Infelizmente, este local existe. Mas, já que existe, espero que muita gente o visite para que jamais se repita.» E acabava com a candura de que só um jovem poderia ser capaz: «Beijinhos e desculpem». (2005)
Eu vi-o em Auschwitz, velho e magro, apoiado numa bengala, e adivinhei-lhe a origem pela forma como andava por ali, alguém que regressa a uma casa em ruínas à qual reconhece os cantos. Voltei a encontrá-lo por acaso em Kazimierz, o bairro judaico de Cracóvia, quando procurava a sinagoga Izaak, uma das oito sinagogas que voltaram entretanto a abrir portas. Ele disse: «Aqui era um bairro judeu». Eu disse: «Vi-o ontem em Auschwitz». Ele disse: «É possível. Uma irmã minha morreu lá em 19..., outra em 19...». Esqueci os nomes e as datas. O olhar dele era tranquilo, a voz amável, o pulso tatuado. Não consegui dizer mais nada. Fugi por vergonha de sentir uma dor que não me pertencia.
Talvez o mesmo tenha se tenha passado com Patrícia, do Porto, Portugal, que deixou escrito no livro de visitas do Pavilhão da Checoslováquia, em Auschwitz: «9 de Maio de 2005. Infelizmente, este local existe. Mas, já que existe, espero que muita gente o visite para que jamais se repita.» E acabava com a candura de que só um jovem poderia ser capaz: «Beijinhos e desculpem». (2005)
* ADENDA: João Tunes, aqui, acaba de me recordar que hoje se comemora a libertação de Auschwitz pelo Exército Vermelho. A escolha deste post e a escolha da fotografia que o ilustra foram uma coincidência que me deixa meio atarantada, confesso.
Esse bispo Williamson da Associação Pio-não-sei-quê deveria ser empalado. À moda de Ivan, o Terrível.
ResponderEliminarFoi tudo uma ilusão de massas. Uma construção colectiva! Por sua vez, o aparecimento da Virgem aos pastorinhos é facto.
ResponderEliminar«...o aparecimento da Virgem aos pastorinhos é facto...», e contra factos não há argumentos nem preservativos vaticâncios.
ResponderEliminarAgradeço a fineza de não manipularem a terminologia do material.