Queríeis conversa? Então vamos lá.
Lembrei-me deste incidente por causa do histórico 25 de Novembro. E por deferência aos leitores mais novos, concedo um preâmbulo.
Houve o 5 de Outubro, o 28 de Maio, o 25 de Abril, o 11 de Março e o 25 de Novembro. Nas duas primeiras datas ainda não era nascida e tudo o que sei foi de ouvir dizer. Do 25 de Abril já falei e falarei noutra altura. Quanto às que restam, despindo a coisa de atavios, era mais ou menos assim: no 11 de Março os cabrões do PCP não tomaram o poder por pouco; no 25 de Novembro os cabrões dos reaças tomaram o poder e pronto. Apesar das eventuais divergências quanto a este meu apanhado, o que interessa é que, em ambos os dias, as hostes fervilhavam.
A história que vos conto, julgo ter tido lugar no 25 de Novembro mas para o caso tanto faz. Aconteceu (mesmo que tenha acontecido durante o 11 de Março).
O nosso quartel-general, que também o tínhamos, situava-se nas instalações da Faculdade de Ciências, ali à Rua da Escola Politécnica, onde depois se vieram a expor restos de dinossauros e cadáveres chineses. Era um bom quartel-general. Tinha música (na «sonora»), uma cantina, que apesar das baratas e dos ratos podia ser tardiamente assaltada, e era muito central. A mim dava-me bastante jeito porque vinha de Cascais.
Na noite dos acontecimentos, andava por ali um formigueiro de gente. Os camaradas mais experientes mantinham-se em permanente contacto com os camaradas ainda mais experientes (que estariam noutro quartel-general muito mais fora de mão) e a soldadesca aguardava ruidosamente instruções. A dada altura, constituíram-se piquetes que deveriam deslocar-se a pontos estratégicos da cidade em recolha de movimentos suspeitos. Não me perguntem o quê. Era de noite.
Fosse quem fosse o sacana responsável pela distribuição dos lugares, a mim calhou-me a Quarta Esquadra. A Quarta Esquadra, para quem não sabe, fica na Praça da Alegria, um ponto da capital dado a engates e outros ilícitos. Sem avaliar bem o destino que me calhara em sorte (trocara há anos as artérias lisboetas pelo litoral cascalense...), lá fui, intrépida militante, vigiar a PSP.
Chegada ao local (e ainda hoje não me consigo lembrar porque raio o meu piquete era só eu…), sentei-me num banco no jardim, de olho no inimigo. Indiferente ao momento histórico, andava por ali um formigueiro de gente. Nos afazeres do costume. Quanto aos polícias, pareciam calmos, nada havendo a assinalar. Foi então que, ocupando o meu posto de vigia há muito menos de uma hora, comecei a ser abordada pelos regular fellows da praça, apesar da total falta de glam com que nos vestíamos na época: «oh filha, és nova aqui?», «queres um cigarro?», «quanto levas?», «fazes desconto?» e outros vitupérios bastante mais asneados.
Sem saber o que responder aos passantes – e alguns sentavam-se – acabaria por abandonar o meu posto, traindo assim a confiança que em mim haviam depositado os camaradas mais experientes e os mais experientes ainda. Naquela noite, confesso, não estive à altura da revolução.
Lembrei-me deste incidente por causa do histórico 25 de Novembro. E por deferência aos leitores mais novos, concedo um preâmbulo.
Houve o 5 de Outubro, o 28 de Maio, o 25 de Abril, o 11 de Março e o 25 de Novembro. Nas duas primeiras datas ainda não era nascida e tudo o que sei foi de ouvir dizer. Do 25 de Abril já falei e falarei noutra altura. Quanto às que restam, despindo a coisa de atavios, era mais ou menos assim: no 11 de Março os cabrões do PCP não tomaram o poder por pouco; no 25 de Novembro os cabrões dos reaças tomaram o poder e pronto. Apesar das eventuais divergências quanto a este meu apanhado, o que interessa é que, em ambos os dias, as hostes fervilhavam.
A história que vos conto, julgo ter tido lugar no 25 de Novembro mas para o caso tanto faz. Aconteceu (mesmo que tenha acontecido durante o 11 de Março).
O nosso quartel-general, que também o tínhamos, situava-se nas instalações da Faculdade de Ciências, ali à Rua da Escola Politécnica, onde depois se vieram a expor restos de dinossauros e cadáveres chineses. Era um bom quartel-general. Tinha música (na «sonora»), uma cantina, que apesar das baratas e dos ratos podia ser tardiamente assaltada, e era muito central. A mim dava-me bastante jeito porque vinha de Cascais.
Na noite dos acontecimentos, andava por ali um formigueiro de gente. Os camaradas mais experientes mantinham-se em permanente contacto com os camaradas ainda mais experientes (que estariam noutro quartel-general muito mais fora de mão) e a soldadesca aguardava ruidosamente instruções. A dada altura, constituíram-se piquetes que deveriam deslocar-se a pontos estratégicos da cidade em recolha de movimentos suspeitos. Não me perguntem o quê. Era de noite.
Fosse quem fosse o sacana responsável pela distribuição dos lugares, a mim calhou-me a Quarta Esquadra. A Quarta Esquadra, para quem não sabe, fica na Praça da Alegria, um ponto da capital dado a engates e outros ilícitos. Sem avaliar bem o destino que me calhara em sorte (trocara há anos as artérias lisboetas pelo litoral cascalense...), lá fui, intrépida militante, vigiar a PSP.
Chegada ao local (e ainda hoje não me consigo lembrar porque raio o meu piquete era só eu…), sentei-me num banco no jardim, de olho no inimigo. Indiferente ao momento histórico, andava por ali um formigueiro de gente. Nos afazeres do costume. Quanto aos polícias, pareciam calmos, nada havendo a assinalar. Foi então que, ocupando o meu posto de vigia há muito menos de uma hora, comecei a ser abordada pelos regular fellows da praça, apesar da total falta de glam com que nos vestíamos na época: «oh filha, és nova aqui?», «queres um cigarro?», «quanto levas?», «fazes desconto?» e outros vitupérios bastante mais asneados.
Sem saber o que responder aos passantes – e alguns sentavam-se – acabaria por abandonar o meu posto, traindo assim a confiança que em mim haviam depositado os camaradas mais experientes e os mais experientes ainda. Naquela noite, confesso, não estive à altura da revolução.
looool ... de partir a moca
ResponderEliminaré mesmo fixe ler estes "recuerdos". Diferimos nas cidades e, suponho que ligeiramente, na fase etária.
ResponderEliminarSuponho que terá sido sempre a consciência (gradativa, nada de rompante, doloroso e/ou exultante) da obediência que me afastou da religiosidade e da militância. E dos ídolos.
Foi muito agradável ficar rir logo de manhã, provocado pela leitura do seu texto.
ResponderEliminarMuitos parabéns por escrever tão bem e com tanto senso de humor.
Palmei-o, com a devida vénia, para o colocar no meu LiveJournal, se não se importar
n, antes do 25 de abril andar metida em políticas tinha que ver com uma história pessoal (o meu pai tinha estado preso, entre outras coisas...), mau feitio, hormonas adolescentes e, sobretudo, acho eu, o incómodo que a injustiça e a mediocridade sempre me provocou. a seguir ao 25 de abril, a política passou a ter sobretudo com poder. mesmo nas franjas por onde eu andava, que apelam hoje ao riso. Mas é vê-los agora em postos decisivos para perceber que quem quis fazer carreia fê-la. eu sempre estive fora dessas jogadas: a injustiça e a mediocridade continuam a causar-me incómodo. mas conheci e lidei com cada cromo!
ResponderEliminarM. Abrantes e Lili, se vos fiz rir já ganhei o dia...
Divino TExto: não conhecia o blogue, mas vou regressar. Muitas vezes...
ResponderEliminar«Naquela noite, confesso, não estive à altura da revolução.» Belo texto e muito divertido. Vou agora ler o texto sobre o 25 de Abril...
ResponderEliminarGosto mesmo quando na pastelaria se fala da nossa história recente, mas de que quase já ninguém se lembra. Merci
ResponderEliminarRealmente, estas histórias são 'fixes', dão outro colorido à História. Uma jovem num banco de jardim, no papel de sentinela, atenta aos movimentos da PSP.
ResponderEliminarOs jovens de agora não têm oportunidade nenhuma de fazer qualquer gesto com um significado tão 'pleno', no campo da História, ainda que muito das lutas de então tenham sido uma ilusão (ou será que têm, de outra maneira?)
Ainda bem, por um lado, mas tão depressa se passou de um extremo ao outro!
(E se calhar, para si, o episódio nem teve assim 'tanto significado').
Já agora: ai os tratantes começaram a meter-se consigo? Eu a pensar que o pessoal, nessa época, só tinha olhos para a política!
(eu não me lembro, não andava ainda na creche, quanto mais!)
as coisas que se fazem pela revolução...
ResponderEliminarque bom ter estado lá para contar, com um sorriso nos lábios...
todos aquelas ofertas na Pç da Alegria, apesar do ar sandálico? O que é a necessidade! Pobre gente
ResponderEliminaranónimo, referes-te ao ar sandálico em geral ou ao meu em particular?
ResponderEliminar... o arroz doce...
ResponderEliminarA estória não faz sentido, quer se refira ao 11 de Março quer ao 25 de Novembro.
ResponderEliminarNem uma nem outra das ocorrência se verificou de noite; ambas tiveram lugar de manhã e tudo já estava resolvido à tarde.
Portanto, ou se trata de pura ficção (o que tem o seu mérito, claro) ou a coisa deu-se noutra data qualquer, porventura sem relação com a política.
percebo o que estoriador quer insinuar mas a história é absolutamente verídica. e relembro que, como qualquer data, há uma parte do dia em que é dia e uma parte do dia em que é de noite. Das 0 às 24h. Topas?
ResponderEliminarNão topo, não.
ResponderEliminarAbsolutamente verídica. E recordo-me que uma tua homónima passou um dia de desespero porque, sem ter tirado as lentes de contacto durante 24 horas, os olhos inflamaram-se-lhe de tal maneira que não conseguiu estar presente no desfecho do evento.
ResponderEliminar«e ainda hoje não me consigo lembrar porque raio o meu piquete era só eu…»
ResponderEliminarahahahah!
genial, ana cristina! todo o texto, claro :-)))
levo para o meu, pode ser? :-)
sem-se-ver, tem graça que tenha citado isso porque ontem à noite telefonou-me um amigo com quem não falava há anos e que me explicou a razão de ser do piquete ser só eu. É porque ele tinha ficado no quentinho de Ciências e quando foi finalmente ter comigo já eu estava pronta a zarpar, baralhada con tanto assédio. Quando voltámos para o Princípe Real e nos dirigimos a Ciências tivemos um encontro com uns tipos aos tiros que contarei noutra altura. Foi tudo na mesma noite e, o mais provável, na véspera do 11 de Março. Ou seja, histórias pícaras não faltam...
ResponderEliminarvenham elas!!
ResponderEliminar:-)
Adensa-se a confusão.
ResponderEliminarTiros no Príncipe Real? No 11 de Março? No 25 de Novembro?
Eheheheheheh!!!
estoriador, terá de ser paciente e vai ver que tudo se esclarece. eu, pelo menos, começo a ficar esclarecida quanto à razão das suas visitas
ResponderEliminarSe é lá por isso, deixo de as fazer.
ResponderEliminarMas, antes, explique lá o que sabe sobre o motivo das minhas visitas. Estou cheio de curiosidade.
Confirma-se: como um mau historiador pode estragar a História só por querer ficar na fotografia.
ResponderEliminarbom recuerdo, Ana.
o resto é o resto,só.
Este RVN está cheio de sorte. Olhem se o disparate pagasse imposto...
ResponderEliminarSão as vidas reais, claro.
o estoriador quer conversa, mas aqui só servimos bolas de berlim
ResponderEliminardaquelas maradas que se vendem nas praias?
ResponderEliminaro estoriorador está desactualizado
ResponderEliminarVitupérios? Parece-me conversa bem sensata. Melhor que num clube de pensadores.
ResponderEliminarExcelente. Foi assim mesmo.
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