22/11/08

Enquanto o país se assombra com um Loureiro e uma Oliveira eu dou continuidade às memórias na alcova, derivado ao raio de uma gripe ou lá o que seja

A mim não foi um qualquer quem me recrutou. Não senhor. O rapaz (na altura) havia de palmilhar uma via ascensional que, não o tendo conduzido a Fátima, o levou ao Santo Sepulcro. E para quê falar com Nossa Senhora quando se pode falar com Deus? Foi o que eu pensei. Estive uns anos sem saber dele. Até que soube. Estava bastante mais gordo. De resto estava igual.
Vou-vos, então, contar. Na altura ele não dirigia jornal coisíssima nenhuma. Era tão estudante como eu. Um dia chegou ao pé de mim e disse-me: «Temos que falar!». O tom era imperativo e conspirativo. Revelava que havia coisa. A certa altura chamou-me «camarada!» e eu senti que o momento era solene: «Camarada! Pensamos que chegou a altura de entrares para a UEC (ml). Não tens de responder já».
Aqueles que me lêem e se lembram d’ A Vida de Brian (Are you the Judean People's Front? Fuck off! What? Judean People's Front. We're the People's Front of Judea! Judean People's Front. Cawk. etc.) talvez consigam perceber.
Um: que o grande inimigo da União dos Estudantes Comunistas (marxistas-leninistas) era a União dos Estudantes Comunistas. Dois: que uma jovem ser convidada a entrar na União dos Estudantes Comunistas (marxistas-leninistas) seria o equivalente, na actualidade, a uma jovem ser convidada a entrar numa telenovela da SIC. Como protagonista. Devem-me ter tremido as pernas. Se não logo, depois. Já perceberão porquê. Respondi gaguejando que sim. E mais tarde combinou-se um encontro. Clandestino, como soía.
Não é preciso ter lido a Zita para saber que tais encontros envolviam preliminares kamasutrianos. Havia uma senha, como nos spy games, e havia, sobretudo, «o percurso». O percurso era um preâmbulo peripatético ao encontro, durante o qual todos os militantes tinham de atestar que a distância mais curta entre dois pontos nunca era uma linha recta. Por exemplo: eu estava no Cais do Sodré e queria ir para a Graça. Certo e certinho que havia de passar pelas Avenidas Novas com desvio pela Calçada da Estrela.
Abreviando, apanhámos o 28. Que estava longe de ser uma atracção turística e, como era uso então, seguia de portas abertas. Combinámos. Ali por perto da Calçada de São Vicente, quando a velocidade se encurta e o eléctrico faz corpo com o casario, pularíamos em andamento, no intuito de galgar umas escadas de que esqueci o nome. Aquiesci e lá montámos o dito, no meu caso tomada pela ânsia de ― imitando o voo do meu angariador ―mergulhar de cabeça no mundo dos ungidos.
E mergulhei literalmente de cabeça. Porque apesar do sim! sim! voluntarioso com que anuíra às instruções, a verdade é que nunca saltara de eléctrico. Quando finalmente cheguei, coxa, ao termo das escadas, o rapaz que muito mais tarde viria a ser, to say the least, um afamado e anafado director de jornal deu ― sem esconder a contrariedade ― por cancelado o encontro.
A coisa não começava bem e havia de terminar pior.

5 comentários:

  1. (Continua)

    Mas! Aquela americanice da vida de bráian...
    com os filmes ML e (R) que fizemos não seria preciso lembrar que a escola (daqueles filmes, 'f course) era americana; e as 'estórias' em português ficam muito mais bem instaladas.

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  2. Delicioso, ana cristina. Verdadeiramente, a suivre.
    Num ápice, lembrei-me dos meus verdes 13 anos, da minha brevíssima incursão pela JCP - já depois das portas que Abril abriu, claro - e do esforço do nosso controleiro em treinar-nos para uma eventual clandestinidade ...

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  3. É preciso sofrer para ser politicamente belo/a.

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  4. Logo o José Manuel Fernandes, é preciso ter azar.
    Mesmo assim, acho melhor os morangos com açúcar que ser convidado por esse tipo... Mas isso sou eu que fui da UEC.

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