Há muitos, muitos anos, muito antes do conflito de civilizações, tive um namorado muçulmano. Conheci-o em Montmartre, era pintor (naturalmente) e vivia numa casa onde Picasso, o próprio, pintara uns retratos quando jovem artista. Na altura ― há muitos, muitos anos, como disse ― eu era muito namoradeira (um dia contarei como essa característica me afastou definitivamente da extrema-esquerda...). Engatei-o, ou ele engatou-me, para o caso tanto faz, durante uma visita ao bairro. Abdullah, vamos chamar-lhe assim, vendia quadros. E no meio de tanta versatilidade pictórica ― torres eiffel a carvão, meninos com lágrimas a óleo, paisagens pontilhistas e abstraccionismos vários ― os quadros de Abdullah sobressaíam. Naquele dia fiquei ali a olhá-los.
Abdullah tomou-me por compradora e quis-me vender uma obra. Eu disse que não tinha dinheiro. Ele baixou o preço... Depois um pouco mais... Um pouco mais ainda... E foi então que eu lhe contei que não era dali, que vinha de um país pobre e que era pobre. Abdullah tomou-me por pária, como ele, e comoveu-se.
Abdullah era da Côte d'Ivoire, e eu levei mais de uma semana a conseguir traduzir Côte d'Ivoire para Costa de Marfim porque na altura não sabia os nomes dos países em francês. Convidou-me para jantar. Que voltasse às 7, quando dava por encerrado o negócio. Eu respondi talvez e fui à minha vida. Enquanto andava na minha vida, pensava na proposta de Abdullah. Como era muito namoradeira, e tinha gostado muito d' O Fio da Navalha do Somerset Maugham, acabei por voltar a Montmartre, sem o que este post nunca teria existido.
Abdullah já empilhara as obras quando cheguei e olhou para mim (como suponho José Policarpo olharia para a nossa senhora de fátima se esta lhe aparecesse...), duvidando da minha corporalidade. Após tantos convites em vão, la voilà! Acho que foi isso que Abdullah pensou.
Para abreviar razões e este post, eu e Abdullah tornámo-nos namorados. Comíamos galinha picante com sumo de pacote (vinho, jamé!), ele mostrava-me fotografias da Côte d'Ivoire (lindíssimas!), falava-me da família que tinha deixado para trás, do seu sonho de ser pintor à Paris... e telefonava-me dez vezes por dia. Tanto telefonema acabou por atafegar-me, principalmente por causa daquela parte em que ele insistia em saber onde é que eu estivera durante o telefonema anterior que ninguém tinha atendido. Ao pesadelo de Bell juntou-se o do dernier métro: sempre que após um dia passado juntos eu queria ir para casa, Abdullah argumentava com o absurdo dos perigos subterrâneos; mas um homem que tem como namorada uma passante ocasional, que aceita jantar com ele sem o conhecer de lado algum, também deveria saber que não vai ser uma viagem de metro, mesmo tardia, a conseguir retê-la chez soi... Finalmente, Abdullah desatou a querer casar e levar-me à Côte d'Ivoire, onde me apresentaria ao pai, à mãe, à avó, aos irmãos e irmãs, aos tios e aos primos... As famílias demasiado alargadas dão-me claustrofobia e aquilo começou-me a assustar, muito mais do que o último metro que, de facto, por vezes não era seguro. Resumindo: eu estava-me a meter num «monte de sarilhos».
Poupo-vos ao desenlace, para acrescentar apenas que nunca mais vi o Abdullah nem fui à Costa do Marfim. E que dessa parte tenho pena.
Abdullah já empilhara as obras quando cheguei e olhou para mim (como suponho José Policarpo olharia para a nossa senhora de fátima se esta lhe aparecesse...), duvidando da minha corporalidade. Após tantos convites em vão, la voilà! Acho que foi isso que Abdullah pensou.
Para abreviar razões e este post, eu e Abdullah tornámo-nos namorados. Comíamos galinha picante com sumo de pacote (vinho, jamé!), ele mostrava-me fotografias da Côte d'Ivoire (lindíssimas!), falava-me da família que tinha deixado para trás, do seu sonho de ser pintor à Paris... e telefonava-me dez vezes por dia. Tanto telefonema acabou por atafegar-me, principalmente por causa daquela parte em que ele insistia em saber onde é que eu estivera durante o telefonema anterior que ninguém tinha atendido. Ao pesadelo de Bell juntou-se o do dernier métro: sempre que após um dia passado juntos eu queria ir para casa, Abdullah argumentava com o absurdo dos perigos subterrâneos; mas um homem que tem como namorada uma passante ocasional, que aceita jantar com ele sem o conhecer de lado algum, também deveria saber que não vai ser uma viagem de metro, mesmo tardia, a conseguir retê-la chez soi... Finalmente, Abdullah desatou a querer casar e levar-me à Côte d'Ivoire, onde me apresentaria ao pai, à mãe, à avó, aos irmãos e irmãs, aos tios e aos primos... As famílias demasiado alargadas dão-me claustrofobia e aquilo começou-me a assustar, muito mais do que o último metro que, de facto, por vezes não era seguro. Resumindo: eu estava-me a meter num «monte de sarilhos».
Poupo-vos ao desenlace, para acrescentar apenas que nunca mais vi o Abdullah nem fui à Costa do Marfim. E que dessa parte tenho pena.
Nada como um dente de marfim para matar saudades dos dentes de ouro da Costa do Marfim. O Abdullah que fique com os louros do post
ResponderEliminarah ah ah! O Vila-Matas ia gostar deste texto :)
ResponderEliminarEnfim, uma vida plena de aventuras e peripécias!Também eu vivi intensamente, mas, por enquanto, não posso narrar alguns acontecimentos da minha vida!Se o meu filho, que tem 18 anos, deles tomasse conhecimento, perderia de imediato a autoridade de lhe fazer advertências,fosse no que fosse! Tenho a certeza que iria atirar-me à cara a inconsequência que eu própria tinha na idade dele!
ResponderEliminarmilú, as minhas filhas não frequentam a pastelaria, vão lá aos tascos delas. e têm muito sentido de humor... não levam a mãe demasiado a sério, a não ser quando tem mesmo que ser
ResponderEliminarRubem Focs comenta em Belo Horizonte: "Está aí uma história que gostaríamos de ler também em livro".
ResponderEliminarManuel e o título podia ser «Paris Nunca Desilude»
ResponderEliminarAgradeço a (fulminante) inspiração: http://abnoxio.weblog.com.pt/arquivo/2009/01/improviso_quase_coranico
ResponderEliminarAna Cristina, parece-me que o romance que relata e as sucessivas atribulações, ainda por cima num cenário como Paris, radica mais numa jalousie masculina (embora algumas mocinhas também gostem de confundir amor com controlo) do que em relações íntimas e directas com o Corão...
ResponderEliminarcristina, a jalousie masculina quando justificada pelo corão pode ser muito assustadora. mas concedo que ter como marido um católico da opus ou um judeu ultra-ortodoxo tb. não será pera doce...
ResponderEliminarGenial, como sempre. Tão bom como a narração do 25 de Novembro. Tudo e sobretudo o pormenor dos telefonemas. Nestes comentários registo também o aparecimento de Milu, mais uma leitora quase autora, a braços com uma variante do síndrome de Zuckermann.
ResponderEliminar...pois! :)
ResponderEliminarluís, a culpa disso é do Flaubert com aquela coisa da madame c'est moi. Já agora: achei graça aos comentários sobre a história do policarpo no seu blogue. há-de ter um nome esse sindrome de pôr o autor a dizer coisas que não disse... também achei graça à forma como comentou os comentários, mas dúvido que tenha sido esclarecedor para os referidos comentaristas. e com isto me calo que este comentário está a ficar um pouco confuso
ResponderEliminarOu "we'll always have Paris".
ResponderEliminarFaltam-te aí uns "e" em "Ivoire". Mais, bof, les gars, lá bas... y' voient rien.
João, já corrigi.
ResponderEliminarA tua sucinta história pessoal expressa um choque cultural.
ResponderEliminarNunca conheci nem namorei com muçulmanas, mas conheço um caso duma amiga que viveu uma situação idêntica à tua.
Apesar dos pesares, o Cardeal-Patriarca não deixa de ter razão... e eu não gosto dele e sou agnóstico! :)
Os muçulmanos, mesmo os instruídos, dificilmente se conseguem libertar do peso dos seus arquétipos culturais...
Diz Maldonado, sem maldade ou tolice,que os muçulmanos e cito "não se conseguem libertar do peso dos seus arquétipos culturais".
ResponderEliminarMas o trágico não é isso. O realmente trágico é que não se trata de arquétipos culturais, mas sim de fanatismo puro e simples, incutido e mantido por uma propaganda sistemática e brutal que começa na mais tenra infância.
Se cá lhe tivessem feito o mesmo, duvido que Maldonado - e eu também o sou - conseguisse agora ser agnóstico.
O fanatismo islamita, por muito que custe a conceber aos demagogos da nossa praça, é que está a causar, como sempre causou no passado, o tão apregoado "choque cultural".
Não nos deixemos intimidar pelos fundamentalismos sejam de que tipo forem.
José Manuel Vieira