28/02/11

Isto anda tudo ligado (I): O menino de ouro e os cartazes Ex-Aequo

“Esta é a história de um rapaz que voou atrás de um sonho”
“Todos comprovam que (…) é um MENINO DE OURO”
“Quantos de nós cometeram erros?”
“Onde estão os valores morais? (..) os direitos humanos? (…) os valores apregoados mas que não chegam até nós?”
(excertos da carta a Oprah Winfrey)

Confesso que, após o espectáculo patético e pateta de lançar as cinzas de um morto para dentro de um respiradouro de metropolitano, pensei que o episódio da morte de Carlos Castro não pudesse descer mais baixo. Mas eis que, amainada a cavalgada heróica contra os homossexuais, surge uma carta dirigida a Oprah Winfrey pedindo-lhe que ajude a mãe de Renato Seabra, o aspirante a modelo preso em Nova Iorque.
Qualquer pedido de ajuda é legítimo e a americana mete os milionários portugueses num chinelo. Mas invocar “valores morais”, “direitos humanos”, “sonhos” e “erros” a propósito de um homicídio brutal (mesmo se fruto de psicose momentânea) só de quem nunca leu Crime e Castigo.
E outro assunto. Talvez também eu esteja a ficar velha como o xerife do Cormac. Digo isto porque apenas um longo bocejo me arrancou a polémica em torno dos cartazes da Rede Ex-Aequo (Ela/Ele é lésbica/gay e estamos bem com isso) que representantes do Ministério da Educação consideraram recentemente matéria ideológica.
Sexo. Sexo. Sexo. Tenho para mim que, no fundo, no fundo, no fundo, isto está a ficar cada vez mais parecido com um filme francês: falam… falam… falam… Com uma agravante: além de falarem demais andam à pancada mais cedo. Pelos menos, é o que apontam alguns estudos que indiciam percentagens muito elevadas de violência entre parceiros adolescentes.
Perante isto, mais cartazes, menos cartazes, je m'en fous como diria Pierrot, na verdade Ferdinand, no filme de culto do Godard e já que falámos de franceses.
Milan Kundera, que antes de ser francês já era checo, escreve no seu recente ensaio Um Encontro, que, no que toca à liberdade sexual, se atingiu o limite. Mas Kundera também está velho (já vai para 83!).

27/02/11

Está um calor do caraças — que pena ainda não ter aberto a praia de Mangualde

E, na realidade, se até os casinos de Las Vegas têm praias e ficam algures no deserto, por que não Mangualde, a 99 quilómetros da costa?
Depois do Allgarve do Pinho, Azevedo inventa as Caraíbas mangualdenses.
É Portugal muit' à frente!

24/02/11

Aviso especialmente dirigido aos clientes do sexo masculino que visitam esta Pastelaria

A partir de hoje, além do preservativo, não se esqueça de ler atentamente a legislação do país onde.... you know (não sei dizer you know em sueco).

Em resumo, é isto

A Europa, que negou à Turquia a entrada na União (eram pretos, eram árabes, cheiravam mal), que negociou cordões de segurança com a Líbia para conter a imigração ilegal (eram pobres, eram porcos, falavam alto) manifesta agora a sua comoção perante um povo que se levanta pela liberdade e pela justiça, nas palavras meigas de Rompuy.
De um dia para o outro fechamos a tenda, espantamos os camelos e mandamos o líder carismático para a puta que o pariu. A festa estava boa mas há um povo que se levanta, Muamá. E quando um povo se levanta, a Câncio desperta de seis anos de anestesia realista e já não há nada a fazer. Quando um povo se levanta limpamos o pó aos valores e a senhora Muznik discorre sobre os riscos do fundamentalismo islâmico. Quando um povo se levanta a nossa direita liberal-salazarista incha de virtudes democráticas e recorda Chávez, Fidel Castro e Erdoğan mas esquece, porque estão tão longe, Berlusconi ou Sarkozy.
Ah, isto vai soar lindamente nas ruas do Cairo e nos arrabaldes de Tripoli. A Europa dos direitos, a Europa dos princípios, a Europa que lhes cerrou fronteiras, que lhes mimou os vergudos, que os fodeu com punhos de renda enquanto estavam prostrados agora levanta-se para os aconselhar.
Ajuda-te a ti próprio e todos te ajudarão, dizia Nietzche. Vai aprendendo, Abdul.

23/02/11

Há cinco meses era visita de casa, agora chama-lhe "anacrónico" (Aqui)

Luís Amado, o chefe da diplomacia portuguesa que só abre a boca para dizer asneiras (o que será feito do egípcio antissemita que Portugal queria pôr à frente da UNESCO?) ou, em alternativa, coisas óbvias, foi convidado de Muammar Khadafi em Setembro último. Comemorava-se o 40º aniversário da "Revolução do Grande Al-Fateh".
Sim, eu sei. A Líbia tem bué petróleo. Mas entre negociar petróleo com a Líbia e partilhar a intimidade do Muammar, há pelo menos a distância que vai de um camelo a uma agulha.
E sobre camelos ficamos conversados.

22/02/11

Este post não tem que ver com a Líbia embora fale de gás natural

Ontem recebi em minha casa um cavalheiro de sua graça Luís Roque. Não costumo receber às segundas, mas a estridência da campainha obrigou-me a contrariar a regra.
O nome da criatura havia de trazer-me à l’esprit um poema do O’Neill — com o qual passo, aliás, a intervalar o relato dos eventos (não é por acaso que este blogue se chama “Meditação na Pastelaria”).
Dois pontos.

“Que vergonha, rapazes! Nós práqui
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no ‘diz que’
e a desnalgar a fêmea (‘Vist’? Viii!’)

Que miséria meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza…
mas logo desço à rua, encontro o Roque
(‘O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!’)
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, sr. O’Neill! E… as varizes?

Cumprido o devaneio poético, esclareço, antes de prosseguir, que o Roque que me bateu à porta em nada se assemelhava ao Roque do poema, com excepção do apelido.
Espécimen actual, robusto e robótico, não apresentava vestígios de varizes e aposto 7 sem trunfos que no seu currículo consta pelo menos uma viagenzita exótica a um sítio com palmeiras.
De ombro na ombreira, anunciou-me que era da Galp Energia e vinha cortar o gás. Apanhada de surpresa, lancei um tímido ora bolas ana cristina e balbuciei faça favor.
Antes de terem inventado a emancipação feminina, talvez pudesse ter simulado um desmaio, pedido um copo de água, fungado com elegância e implorado
— Senhor por quem sois, adiai a vossa vil missão apenas por umas horas…
ou, em alternativa, arriscado um qualquer pedido insólito do género
— Ó! Já que aqui está, dê-me o seu braço e dancemos!
na certeza, porém, que nenhuma das hipóteses teria comovido o meu Roque.
Carrancudo, insensível, quiçá incorruptível (não testei essa parte), pegou na caixa de ferramentas e trancou-me o fornecimento. Estendeu-me o comprovativo e foi-se sem dizer bom-dia.
Mistérios do inconsciente, lembrei-me de Magda Goebbels e ainda pensei gritar-lhe Heil, mein Führer só para o ver tropeçar na escada.
Com começo tão auspicioso, o dia só podia melhorar; contudo, sem querer antecipar o final, posso dizer-vos já que o pior estava por vir.
Dirigi-me aos serviços da Galp Energia, paguei a factura em atraso, marquei a hora da (re)ligação e passei a espera a sonhar com um banho quente.
Por volta das quatro, bateram à porta. O meu coração saltou como o do seminarista do Rimbaud sob a sotaina. Helàs, não era Thimothina Labinette.
Ao ver outra vez o Roque, não tive um achaque mas tive um pressentimento: esta merda vai acabar mal.
Dirigiu-se à cozinha, escusou a minha ajuda, desviou o fogão. Desapareceu na escada. Voltou à cozinha. Perguntou pelo esquentador e desapareceu de novo.
— Já está ligado?, perguntei hesitante quando o vi voltar pela quarta vez mas sem luvas.
Com a cabeça, ou mais apropriadamente dado o calibre do animal, com os cornos enfiados entre papéis, respondeu-me entre dentes que não. O gás ia ficar suspenso porque detectara uma pequena fuga na ligação ao fogão.
Agarrei-me desesperadamente ao adjectivo. A instalação é nova, foi certificada (tive alguma dificuldade em encontrar a palavra e os papéis que a comprovavam), talvez fosse apenas do tubo mal encaixado, uma torneira folgada…
Roque não queria saber de tais miudezas. Não eram da sua conta. E enquanto me estendia um folheto com a lista de empresas certificadas para onde poderia telefonar e um encarte da Comfortline que me garantia na capa que “Para sua Segurança o abastecimento de Gás Natural foi interrompido”, o Roque, indiferente à minha perplexidade, abria um fecho da pasta e dispunha-se a preencher a ficha da vistoria.
— Bom, já que o senhor me está a dizer que vou continuar sem gás, faz favor de me explicar o motivo como se eu fosse muito estúpida.
Foi a vez do Roque ficar perplexo.
— Não estou habituado a que os portugueses duvidem da minha palavra.
— Sou uma céptica, caro Roque, sou uma céptica.
— Já podia ter dito mais cedo.
A contragosto, regressou à escada, desselou a porta da instalação, tornou a montar o aparelho medidor, encaixou no tubo por onde passa o gás uma pêra de borracha que me recordou um clister antigo que havia em casa dos meus avós, e provou-me — com o mesmo ar vitorioso que imagino ter sido o de Hitler quando invadiu a Polónia — que a pressão descia abaixo dos 50.
Fiquei estupidamente na mesma, arrependi-me pela milionésima vez de não ter ido para Ciências, mas senti uma grata satisfação por verificar que havia qualquer coisa no cérebro daquele lobotomizado que ainda mexia: um esgar irritado, um piscar nervoso de olhos, um descontrolo momentâneo nos movimentos.
Quanto à Galp Energia, evitou decerto uma explosão mortífera no meu prédio (apesar de ao meu vizinho de cima ter sido detectado o mesmo problema, nantendo-se, embora, o gás aberto).
No meio disto tudo (tirando os prá i 100 euros que vou ter de largar para me apertarem uma anilha), algo verdadeiramente me encanita: como a Galp Energia não faz vistorias regulares às instalações, mas apenas detecta fugas quando algum cliente se atrasa no pagamento, quem nos garante que um dia destes isto não vá tudo pelos ares, incluindo o Roque?

19/02/11

Reflexão para o fim-de-semana

"Os perus reais são mais pesados que os perus imaginados" in Pense - Uma Introdução à filosofia, Simon Blackburn, Gradiva, 2001

14/02/11

Notícia de última hora: primeiro militante a ser expulso do bloco de esquerda é de olhão parece que tem dívidas ao fisco e não gramava o Alegre (AQUI)

Perdoem-me a emoção e o empolgamento mas a minha terra dava um filme!
Pícaros mais pícaros não há. E foi assim desde que corremos com os franceses, enquanto a malta de Faro assobiava para o ar.

Basicamente acho que é isto: quem lhe comeu a carne que nos roa os ossos

Os egípcios encheram a Praça Tahrir até Mubarak partir para as termas. Os italianos, num processo de imitação a que Berlusconi chamou «subversivo», saíram para a rua este fim-de-semana. Em Portugal discutem-se “moções de censura”.
O BE avançou com uma, em nome, diz o partido de Louçã, da “violação de contrato, perda de palavra, da quebra de confiança” (tudo coisas um bocado antigas, digo eu, mas sem com isto pretender comparar-me com o QI da malta citada neste post).
O Portas, eterno líder do CDS, emergiu logo para dizer que a moção de censura do BE pode ser um favor a Sócrates.
No PSD, enquanto Passos Coelho cavaquisticamente “não comenta”, alguns militantes do Partido, como, por exemplo, Marques Mendes, afirmam mais ou menos o mesmo do que Portas: a moção de censura é um frete monumental ao primeiro-ministro.
O PCP, como habitualmente, reflecte em segredo numa moção de censura que seja minha, minha e só minha.
Quanto ao próprio Sócrates, eterno líder do PS, diz que a moção de censura do BE só serve os interesses da direita, transmitindo mensagens erradas aos mercados (os mercados tornaram-se assim numa espécie de papão omnipresente e omnipotente, pior do que "o homem do saco" da minha infância ….).
Nenhuma novidade, portanto, no reino da fantochada. Ou apenas uma: depois do Simplex, dos painéis solares diurnos e nocturnos, dos moinhos de vento e do Magalhães, parece que finalmente vamos ser salvos pelos carros eléctricos e os árabes que metam o petróleo naquele sítio…
A acreditar no Teixeira dos Santos — e como não acreditar? — é o delírio!

13/02/11

A book a day keeps the doctor away: "Um Encontro", Milan Kundera

Acaba de ser traduzido em Portugal o mais recente ensaio de Milan Kundera, Um Encontro: na realidade, reúne vários encontros e reencontros. A Checoslováquia serve de cenário a alguns deles, mesmo se o escritor, a viver em França desde 1975, acumula as nacionalidades checa e francesa.
Reflexão e memória andam quase sempre de mãos dadas, como no texto dedicado a Anatole France, de quem Kundera se serve para reflectir sobre “listas negras”, escritores que deixaram de ser lidos ou são lidos com desconfiança (primeiro as ideias, depois a obra – Sartre, ao invés de Tolstoi, por exemplo). Porquê? A resposta não é una e voltar-se-á de certo modo ao tema a propósito de Curzio Malaparte e dos chamados “escritores comprometidos”, com um desvio irónico por Brecht, intitulado “Que Restará de Ti, Bertolt?”.
O curto apontamento sobre a solidão erótica em Philip Roth é perspicaz e certeiro, assim como o que Kundera dedica a Céline. Reafirma-se a paixão por Rabelais e a Europa Central (Kafka é, claro, obrigatório) cruza-se algures com a Martinica a propósito da passagem pela ilha de André Breton.
Os ensaios são pessoalíssimos, pontos de vista que se assumem subjectivos e ao “correr da pena”. À intenção teorética sobrepõe-se a empatia com o objecto: fascínio confessado por Francis Bacon (numa leitura estimulante que evita repisar o lugar-comum do “horror”, sempre invocado quando se fala da pintura de Bacon); lição generosa de história e literatura a partir de A Pele de Malaparte, classificado como “arqui-romance”.
Mas se a literatura, naturalmente, domina neste livro, não menos ricos são os ensaios sobre música. Em resumo: 25 anos depois de A Arte do Romance, Kundera continua a fazer-nos pensar.
Um Encontro, Milan Kundera, D. Quixote, 2011, trad. de Isabel St. Aubyn

09/02/11

Mário Quintana que me perdoe mas é que já não há cu para tanta indignação [porque isto (AQUI) parecendo que não, cansa!]

É segundo por segundo
Que vai o tempo medindo
Todas as coisas do mundo.
Num só tic-tac, em suma,
Há tanta monotonia
Que até a felicidade,
Como goteira num balde,
Cansa, aborrece, enfastia…
E a própria dor – quem diria? -
A própria dor acostuma.
E vão se revezando, assim,
Dia e noite, sol e bruma…
E isto afinal não cansa?
Já não há gosto e desgosto
Quando é prevista a mudança.
Ai que vida tão comprida…
Se não houvesse a morte, Maria,
Eu me matava!
(Monotonia)

08/02/11

Ó pá, não me lixem

A defesa de Assange (...) parece basear-se na desacreditação do pedido de extradição, e nas próprias acusações apresentadas por duas mulheres, com as quais o australiano teve sexo consensual em Agosto do ano passado.
Segundo o que se sabe das acusações, a certa altura, terá feito sexo já não tão consensual com as duas, por falta de preservativo. Uma delas acusa-o de ter feito sexo com ela sem preservativo, apesar de ela ter dito que não o consentia, a outra estava a dormir quando ele iniciou a relação sexual sem preservativo e deixou-o continuar — embora seja sublinhado que ele estava em cima dela, restringido-lhe a liberdade de movimentos.

06/02/11

A book a day keeps the doctor away: "Uma Vida à Sua Frente", Romain Gary

Não sei se Dinis Machado leu Romain Gary (quase que apostava que sim...), mas de uma coisa estou certa: os leitores de O que Diz Molero vão gostar também de Uma Vida à Sua Frente.
O romance, traduzido agora pela Sextante Editora, surgiu originalmente em França em 1975 e, no mesmo ano, seria o vencedor do prémio Goncourt. Assinava-o, então, um quase desconhecido de nome Émile Ajar (o “enigmático Émile Ajar”, escrevia-se na época, que apenas publicara um livro, Gros câlin), e que garantiu depois chamar-se Paul Pavlowitch. Paul Pavlowitch manteve a farsa até ao fim, tendo o fim chegado pela mão do próprio Gary que se mataria em 1980 com um tiro na cabeça (nada que ver com o suicídio de Jean Seberg, sua ex-mulher que se matara um ano antes, deixou escrito).
O equícovo desfazer-se-ia postumamente: Émile Ajar era Romain Gary e não Paul Pavlowitch, um familiar do romancista que apenas se prestara à brincadeira.
A verdade, porém, é que Gary também não era Gary. Nascido na Lituânia em 1914, de mãe judia, o futuro escritor respondia, então, por Roman Kacew. Só mais tarde, obtida a nacionalidade francesa em 1938, Roman passaria a Romain, sendo preciso esperar ainda mais um pouco para Kacew passar a Gary. A Alemanha nazi incendiara a Europa, e o autor de Uma Vida à Sua Frente combate agora em Inglaterra, piloto aviador que acabará condecorado no final da guerra. É por essa altura que escolhe o pseudónimo com o qual ficará inscrito nos anais da literatura.
O seu primeiro Goncourt chegara em 1956, com As Raízes do Céu, dois anos depois publicado em Portugal, pela Bertrand, e, na mesma ocasião, transposto para o cinema por John Huston (The Roots of Heaven). E se tinha ganho um, não podia ganhar outro: assim o definem as regras. Gary, contudo, ganhá-lo-ia. E, também por isso, ficou para a história: como o único escritor a quem o prémio foi atribuído duas vezes, mesmo se só o primeiro lhe foi entregue. Na altura, e para grande escândalo dos meios literários parsisiences, Ajar (“brasa”, em russo), digo, Pavlowitch, digo, Gary (“arde”, em russo) recusou a distinção.

O livro, contudo, merece-a. Uma Vida à Sua Frente é um relato comovente, divertido, por vezes, delirante, da infância parisiense de Mohammed, jovem árabe entregue em bebé à ex-prostituta Madame Rosa, uma velha judia sobrevevivente de Aushwitz. Reformada da profissão, Madame Rosa abre um lar clandestino para filhos de putas.
A lei é rígida: as crianças nascidas das mulheres que se defendem (é esta a expressão que Gary usa para prostitutas ) serão retiradas às mães; a velha judia acolhe-as e, a troco de um pagamento mensal muitas vezes irregular, outras vezes, mesmo, inexistente, toma conta daquelas crianças clandestinas que vão crescendo ao Deus dará, ainda assim cheias de amor à vida, como o Banania, só três anos e sorrisos.
O livro é narrado na primeira pessoa por Mohammed, alcunha Momo, jovem adolescente que nunca conheceu a mãe e que acaba por aceitar Madame Rosa, com as suas idiossincrasias, histerias, gordura excessiva e segredos duvidosos como sua substituta. Uma história de amor, portanto, na qual Momo persiste até ao fim, apesar da coisa ter começado a mal: No início, não sabia que Madame Rosa se ocupava de mim só para receber um vale de correio ao fim do mês. Quando soube, já tinha seis ou sete anos, foi um choque saber que era pago. Pensava que Madame Rosa gostava de mim gratuitamente (…) Chorei durante uma noite inteira e foi o meu primeiro grande desgosto.
Paris também ajuda à festa. A cidade e, principalmente, o bairro de Belleville, é uma das protagonistas, com a sua miscelânia de judeus, árabes e negros pobres, proxenetas e prostitutas, miséria e liberdade de mãos dadas. Claro que Uma Vida à Sua Frente surge impregnado de um humanismo ingénuo, mas é precisamente nessa inocência, que o humor desacerta e desalinha, que reside o júbilo da leitura: — És um bom rapaz, Momo, mas tenta ficar quietinho. Ajuda-me. Estou velha e doente. Desde que saí de Auschwitz, só tive problemas.
E depois, claro, há a técnica narrativa, veloz, criativa, desassombrada, os jogos de palavras, a alegria, que – e aqui terá de se pensar na França de então – corria contra-corrente num país rendido à gravidade estruturalista.
Uma Vida à Sua Frente apela à comoção, ao riso, ao sorriso, às lágrimas, à empatia. Não porque a miséria e a solidão surjam borradas a cor-de-rosa mas porque, precisamente, se insiste num rastilho de esperança (a vida toda à nossa frente…), apesar de, no final, o sonho de Israel se provar um sonho impossível.
Adiei o tema doloroso: a tradução. Se a passada rápida de Gray, os atropelos deliberados, a escrita aparentemente acriançada do narrador, se tudo isso não podia resultar num texto limpo e escolar, o que nos é oferecido em português é uma transcrição tosca, descuidada, por vezes imcompreensível. Logo o primeiro parágrafo não é de bom augúrio: A primeira coisa que vos posso dizer é que morávamos num sexto andar sem elevador e que, para a Madame Rosa, como todos aqueles quilos que transportava consigo e só com duas pernas, era uma verdadeira fonte de vida quotidiana, com todas as preocupações e dificuldades. Ela recordava-nos isso sempre que não se queixava de outra coisa, porque era também judia. A sua saúde não era famosa, e posso dizer-vos desde já que era uma mulher que teria merecido um elevador.
Gary não merecia, a Sextante não devia, o leitor não agradece.
Uma Vida à Sua Frente, Romain Gary, Sextante Editora, 2011