31/08/10

Salvo pelos livros

— Não te esqueças amanhã de trazer os livros. Estão os três dentro do saco.
A dor fora-se diluindo gota a gota através do líquido branco que vazava do tubo. Parecia um homem novo.
— Não esqueço.
— Sobretudo, não te esqueças do Balzac. Que escritor! Dentro do saco está A Mulher de Trinta Anos junto com aquele d’ O Filósofo e o Lobo e o outro…
— Não esqueço.
— Quando era novo li o Père Goriot. Que coisa maravilhosa!
— Esse nunca li.
— Nunca leste?! Parece mentira!
— Agora tem de sair.
— Saio já.
— E traz um macinho de tabaco. E um isqueiro…
— Eu trago, mas não sei se o vão deixar fumar.
— Fumo há 60 anos. O que é que adiantaria agora…?
— Eu trago. O tabaco e os livros.
Tem mesmo que ir...
— Amanhã estou cá com as encomendas.
— Vai. Vai. E como é que nunca leste o Père Goriot é que eu gostava de saber…

30/08/10

Da concentração no largo do camões às ambulâncias do INEM (que só actuam em caso de vida ou de morte) e este é o ponto comum entre uma coisa e outra

Corre por aí uma polémica, arrisco que de características tipicamente portuguesas, a propósito da concentração contra o apedrejamento de Sakineh Mohammadi Ashtiani realizada em Lisboa no sábado passado.
A polémica, se assim lhe posso chamar, não é sobre o tamanho das pedras adequado ao acto. Tem que ver com outra coisa. A saber, com quem estava por detrás da dita.
Infelizmente, sobre isso nada posso adiantar. Não sei. Nem sequer sei quem terão sido os organizadores oficiais (a controvérsia pressupõe, claro, que existem organizadores não oficiais).
Também nada posso dizer de particularmente interessante sobre quem esteve presente. Encontrei uma amiga que não via há algum tempo e tropecei na Edite Estrela (despermanenteada). Confesso que não me agrada por aí além concentrar-me ao lado de Edite Estrela, mas a causa justificava-o (foi o que pensei na altura).
No Largo de Camões, muito pouca gente. Mais ou menos o mesmo número de pessoas que se juntava na escadaria da igreja do Chiado a ver uns mimos.
Os organizadores, era evidente, mostravam-se pouco familiarizados com megafones. Percebiam-se mal e os discursos foram moles.
Muitas mulheres de democrático salto-alto — o que me deixa sempre um pouco perplexa por ser do tempo em que a malta, quando se concentrava, corria o risco inevitável de ter de se desconcentrar à pressa.
Tudo isto, porém, são pormenores. Explico-me.
Se fosse eu quem tivesse sido condenada ao apedrejamento (ou, para que não haja equívocos, condenada à morte por qualquer dos métodos disponíveis) gostaria de saber que pelo mundo fora havia gente a manifestar-se. Incluindo a Edite Estrela (já sei que não poderia contar com o Pereira Coutinho que tem uma visão masturbatória da compaixão ou lá o que é...).
Adianto ainda que se tivesse organizado a coisa (não sei quem foi, como já referi acima...) teria preferido concentrar-me na Rua Alto do Duque, 49 e deixar saquinhos de pedras sortidas à porta da embaixada. Até tive uma ideia para um cartaz: As pedras já cá cantam.
Resumindo: na minha (pessoalíssima) opinião, corre por aí uma polémica tonta. Como até o politizado mais empedernido salvo seja, canhoto ou dextro, deveria perceber, o caso é de vida ou morte.
O que me conduz ao segundo tema deste post: o INEM.
Pois o 112, aquele número universal a quem a gente pensa poder recorrer quando está mesmo à rasca, afinal, não é o que parece.
A não ser que já estejamos mortos ou prestes a ficá-lo nos próximos 20 minutos, do 112 despacham-nos para os bombeiros.
Reparem, nada tenho contra bombeiros. Aliás, se há gente de quem goste é de bombeiros. A questão não é essa.
Eu sei que a uma senhora não fica bem falar do metal vil, mas a questão é que em Lisboa os bombeiros cobram 30 euros por ida (e o mesmo à volta), para nos levarem nem que seja a dez minutos de casa. Se sairmos do concelho — e tivermos, por exemplo, de levar um doente de Lisboa ao Hospital de Cascais — são 53 (só ida e não têm troco).
Insisto. O problema não reside nos bombeiros. O problema é o INEM.
Ok. Não se justifica ocupar uma ambulância por causa de uma dor de dentes. Ok. Não morro se não for ao hospital, digamos, no prazo de uma hora. Mas e se a situação for daquelas em que se nada for feito morro daí a três? Espero o óbito e telefono depois do além?
Parafraseando o Sócrates, se o Serviço Nacional de Saúde é uma batalha sem fim a vida é ao contrário. E borrifa-se nos "cortes estruturais". Não acreditam, perguntem ao ex-ministro do trabalho do PS, o profícuo Maldonado Gonelha.

27/08/10

Ainda os ciganos e enquanto for necessário


1. Uma reportagem a 1 euro (a não perder, MESMO) sobre ciganos no país de Sua Majestade. Curioso como, sem andarem sempre de boca cheia de "Liberté, Egalité, Fraternité", menos prosélitos, os britânicos se portam quase sempre melhor.
2. Este homem, Robert Duvall, fez um filme sobre ciganos, Angelo, My Love. Durante a apresentação do filme em Cannes, Duvall visitou-os num acampamento às portas da Hollywood francesa. Não sei se já o desmantelaram (ao acampamento, claro).
3. Django Reinhardt, cigano de pai e mãe e grande guitarrista de jazz, toca La Marseillaise acompanhado por Stéphane Grappelli. A França era, na altura, a better place.

A book a day keeps the doctor away: "Papéis Inesperados", Julio Cortázar

Tão certo como dois e dois serem quatro, gavetas, baús e cómodas de escritores podem revelar-se caixinhas de surpresas. A gosto ou a contragosto, foi o caso de muitos. Kafka é nome recorrente e Pessoa exemplo farto. O primeiro disse ao amigo Max Brod para lhe queimar os papéis, coisa que este recusaria oferecendo-nos, entre outros, O Processo; o poeta deixou um fundo tão sem fundo que contribuiu até para cunhar a frase “Tanto Pessoa já enjoa”. Julio Cortázar (1914-1984) veio acrescentar-se à lista dos (re)descobertos post mortem. No caso, passavam 25 anos.
Estava Carles Álvarez Garriga à conversa com a primeira mulher do argentino na casa que fora de ambos em Paris quando Aurora Bernárdez, 86 anos e testamentária do escritor, decide mostrar-lhe uma “gaveta transbordante”... Garriga não diz assim, mas supõe-se que ficou salivante e gago. O episódio vem contado no Prólogo assinado pelo professor e crítico espanhol, o responsável pela edição de Papéis Inesperados, acontecimento literário que deixou aos pulos os amantes de Cortázar.
Em jeito de miscelânea e forma de almanaque, “modelo para armar” que o próprio não desdenharia, Papéis Inesperados dirige-se, em primeiro lugar, aos leitores habituais do autor de Rayuela. Inéditos, variantes e dispersos compõem o volume, grosso de 400 páginas. A organização fez-se como se pôde: textos em prosa, entrevistas e poemas. Várias subsecções que vão da ficção à política, reflexões sobre arte, crónicas de viagens e simples divertimentos. Etc. No total, 110 textos, nem todos, claro, de idêntica qualidade. Lidos em desordem, o conjunto recomenda-se.
Confrontamo-nos com a habitual e inesgotável curiosidade de Cortázar, o seu humor, o seu olhar moderno e fragmentário capaz de dar a ver o insólito por detrás da normalidade do real e da linguagem normativa. Autor dos que revolucionaria a literatura do século XX e faria da imaginação a pedra de toque (talvez mesmo a “condição da arte” de que falava Borges), Cortázar, lúdico (conceito fundamental que o descarta do experimentalismo descarnado) e iconoclasta, sobrevive ao tempo e à gaveta. Mas também presente em Papéis Inesperados o Cortázar político, o amante de Cuba, o militante anti-imperialista a precisar do enquadramento das sanguinárias ditaduras da época (cabe sublinhar a auto-entrevista, ao jeito de Capote, escrita para a edição em espanhol da imperialista “Life”).
Os leitores habituais confirmarão a paixão. Os que o desconhecem poderão ficar não só com uma ideia das principais linhas com que se cose a obra mas também da sua evolução, já que os textos reunidos cobrem a quase totalidade da vida literária de Cortázar. Ser-lhes-á permitido, por exemplo, aproximar-se do seu universo de “cronópios e famas” (entidades criadas no livro de 1962, Histórias de cronópios e de famas), e do qual se oferecem aqui inéditos, ou rir-se com os episódios não incluídos em Um tal Lucas, a personagem/protagonista homónima desse seu volume de contos.
Impagável por exemplo, este pequeno divertimento linguístico: “Às vezes as pessoas não entendem a forma como fala Matilde, mas a mim parece-me muito clara. — O escritório vem às nove — diz-me — e por isso às oito e meia o meu apartamento sai-me e a escada resvala-me rapidamente porque com os problemas do transporte não é fácil que o escritório chegue a tempo. O autocarro, por exemplo, na esquina o ar está quase sempre vazio, a rua passa depressa porque eu a ajudo atirando-a para trás com os sapatos; por isso o tempo não tem de esperar por mim, chego sempre primeiro. Por fim, o pequeno-almoço põe-se em fila para que o autocarro abra a boca, vê-se que gosta de nos saborear até ao último. Tal como o escritório, com aquela língua quadrada que vai subindo as sanduíches até ao segundo e ao terceiro andar.”

Papéis Inesperados, Julio Cortázar, Cavalo de Ferro, 2010, trad. de Sofia Castro Henriques e Virgílio Tenreiro Viseu

26/08/10

A rapaziada vista pelo ex-presidente da CIP ou é a economia estúpido

São dois rapazes novos, ambos vindos do mesmo sítio, com o mesmo aspecto, com a mesma conversa, muito baseada na imagem. Eles lá fora iam perguntar onde está a mudança e aumentavam o preço da dívida ou iam cortá-la ainda mais, declarações de Francisco Van Zeller, ex-presidente da CIP, a propósito de José Sócrates e Pedro Passos Coelho e de um eventual cenário (antecipado) de vira o disco e toca o mesmo.
Aqui.

Assuntos sérios: as abelhas estão a desaparecer





Visto primeiro aqui.

24/08/10

Silly season ainda: cá para mim os militares que querem ir ao focinho ao Lobo Antunes são da escola do Santos Silva

As ameaças de um grupo de militares ao escritor António Lobo Antunes cheiram-me a esturro. Não porque duvide da indignação dos ditos mas por me parecer estranho que alguém que quer ir ao focinho de outrem (expressão de caserna, naturalmente) ande por aí a anunciá-lo pela comunicação social. A não ser, claro, que os militares em causa gostem de fazer tudo às claras, como julgo ser o caso do ministro que os tutela.
E se, por um lado, estes reformados da guerra me recordam demasiado aquela expressão portuguesa do "agarrem-me senão... qualquer coisa", por outro, Santos Silva, ao anunciar publicamente o envio de espiões para o Afeganistão e Líbano, provou que não basta ser adepto do malhanço para saber brincar às guerras.
Quanto ao escritor Lobo Antunes, gosto muito. Sobre a coragem não-literária do próprio nada sei. Mas em verdade também vos digo: cá para mim, a coragem, como quase todas as qualidades humanas, depende. Pessoalmente, prefiro um escroque cobarde a um escroque corajoso. Sempre causará menos estragos.

[Sobre o livro onde vem impressa a frase que terá ateado a fogueira, Uma Longa Viagem com António Lobo Antunes, de João Céu e Silva, como escrevi na altura, não o achei grande espingarda]

23/08/10

Chamar os bois pelos nomes ou ainda dos ciganos porque ele há coisas que me xaringam mesmo o juízo

[...] Na Europa, que é o nosso mundo, o governo francês continua com a sua política de repatriação de ciganos romenos. A imprensa ajuda sendo eufemística — ninguém usa a expressão "limpeza étnica" — ou incorreta — aqui ou ali vai aparecendo a expressão "imigrantes ilegais".
Vamos ser rigorosos sobre o que isto é e o que não é. Não, não se trata de imigrantes ilegais: os cidadãos romenos são comunitários e têm direito à livre circulação pelo território da União. E, sim, isto é uma limpeza étnica, ou seja, uma expulsão de um dado território de uma população circunscrita por critérios étnicos.
Como seria de esperar, a Itália de Berlusconi já manifestou vontade de seguir o exemplo francês. Quando a Croácia entrar na União Europeia, até 2012, ouviremos discursos sobre o caminho que ela fez desde as limpezas étnicas dos anos 90. Da maneira que as coisas estão, parece-me que é antes a UE que vai aderir à Croácia dos anos 90.
O que a França está a fazer é ilegal, uma clara violação dos tratados e do espírito fundamental da União Europeia. A Comissão Europeia, que é suposta ser a "guardiã dos tratados", não se insurge. Durão Barroso está silencioso. Dá-se tempo a que Sarkozy faça o seu número para as sondagens.
Rui Tavares, aqui (para assinantes), lido aqui à borla
[a fotografia veio daqui, site onde há informação que baste sobre o genocídio dos ciganos durante a II Guerra]

21/08/10

O eterno retorno: pois é, Schulz também não correspondia ao protótipo e acabou assassinado a troco do dentista que também não correspondia ao que seja

[Nota prévia sobre o título deste post seguida de nota prévia sobre o vídeo protagonizado pelo actual ministro do interior francês
1. Bruno Schulz, artista polaco de origem judaica, conseguiu sobreviver algum tempo à "solução final" sob a protecção de Felix Landau, membro da Gestapo que admirava o seu trabalho, acabando por ser assassinado em retaliação por Karl Günther, nazi rival de Landau a quem este matara o dentista privado ("Mataste o meu judeu, eu matei o teu");
2. No vídeo de Setembro de 2009 pode ouvir-se Brice Hortefeux comentar, a propósito do jovem francês de origem árabe com quem posa para a fotografia: "Ele não corresponde de todo ao protótipo.... É sempre preciso um.... Um está bem. É quando há muitos que aparecem os problemas..." Eloquente.]




Entretanto, a argumentação avançada por Brice Hortefeux para justificar a expulsão de 700 ciganos do território francês parece tão datada como a própria natureza humana (que é o que é).
Em resumo, Hortefeux diz isto: quem os defende não tem que levar com eles, ricalhaços da esquerda bem-pensante que vivem longe do povo e das suas preocupações.
Este género de conversa lembra-se sempre o Viridiana do Buñuel mais o seu leproso miserável que era obrigado pelos pares a carregar um chocalho.
Que fique claro, pois: não nutro nenhuma simpatia de princípio pelos pobrezinhos (compaixão é outra conversa e convém que seja universal).
Mas que fique também claro que não é isso que está em causa. O que está em causa é perseverar ou não em ideias morais, por muito impopulares que estas sejam.
Nesse particular, a posição de Obama sobre a construção de um centro cultural islâmico a dois quarteirões do Ground Zero mete num chinelo o pragmatismo da direita francesa (a que veio juntar-se, sem surpresa, a italiana).
E esclareça-se que se não nutro nenhuma simpatia de princípio pelos pobrezinhos, muito menos pelo Islão.

19/08/10

There's probably no god e ainda assim devíamos ter cuidado para não deitar fora o bebé com a água do banho

... porque, afinal, esta maravilha da literatura vem inscrita no Eclesiastes (970/930Ac)
«Lembra-te do teu Criador nos dias da tua juventude, antes que venham os dias da desgraça e cheguem os anos, dos quais dirás: “Nenhum prazer tenho já neles”;
antes que escureçam o sol e a luz, a lua e as estrelas, e voltem as nuvens depois da chuva;
e que os guardas da casa comecem a tremer, e então se curvem os mais fortes;
quando as mulheres deixarem de moer, por já serem poucas, e obscurecerem os olhos dos que olham pela janela;
quando a porta da rua se fechar, e enfraquecer no moinho o som da mó, quando acordares ao cantar do pássaro e emudecerem as canções;
antes que temas a altura e sintas sobressaltos no caminho, e a amendoeira dê flor, e comece a arrastar-se o gafanhoto e a perder o seu sabor a alcaparra, e a encaminhar-se o homem para a sua morada eterna, e a sair à rua aqueles que o vão chorar;
antes que se rompa o fio de prata e se quebre a taça de ouro, antes que na fonte se quebre o cântaro, e se quebre a roldana da cisterna;
antes que o pó volte à terra de onde veio e que o espírito volte a Deus que o concedeu.
Vaidade das vaidades — diz Coheleth — tudo é vaidade.»

17/08/10

Quando a gente pensa que a política bateu no fundo a coisa desce mais três andares e aterra em massamá


Vídeo descoberto aqui

Da esquerda e da direita ou como se prova de novo mais valem dois escritores a voar do que um político na mão

[Enquadramento: o pequeno texto que se segue foi retirado de Como um Verão que Não Voltará (Quetzal, 2010), livro de memórias e reflexão assinado pelo marroquino Mohamed Berrada. Viagem na primeira pessoa até ao Egipto, cobre um período que vai dos anos 50 até ao final do século XX e é um documento imprescindível para se perceber como em meia dúzia de anos se pode passar da civilização à barbárie (e note-se que na Europa também já se provou do mesmo…)]

«Hammad não esquecerá o seu encontro com o poeta Salah Jahine no início dos anos setenta. Tendo vindo ao Cairo procurar elementos para a sua tese, instalara-se numa pensão perto da avenida Kasr al-Nil. Uma noite, quando estava estendido na cama, foi iluminado pelo som de um alaúde acompanhado de uma voz doce e, de tempos a tempos, por comentários e risos; os ocupantes do quarto ao lado haviam organizado uma pequena festa entre amigos. No dia seguinte de manhã, perguntou ao proprietário da pensão quem ocupava o quarto: era o compositor Sayyed Mekkaoui. À tarde, ao sair, cruzou-se com Salah Jahine, cujo rosto lhe era familiar. Cumprimentou-o e apresentou-se; começaram a conversar e, quando Hammad lhe disse que gostaria de o rever com mais tempo, o poeta concordou de boa vontade e combinaram jantar juntos. Hammad, ainda cheio de entusiasmo apesar das decepções, inclinava-se para a revisão radical da experiência da esquerda. Nasser estava morto e tinha deixado um vazio que ninguém sabia como preencher. Hammad, ao abrigo da sua juventude e inexperiência, elaborava críticas e indicava o caminho da esperança; Salah Jahine deixava-o falar, contentando-se em intervir de tempos a tempos para lembrar a sucessão de desmoronamentos e recuos que assinalava a morte do grande sonho. Havia na voz dele uma melancolia indescritível; mesmo quando gracejava, o seu riso breve não conseguia vencer o muro de tristeza que o habitava por inteiro. Depois do jantar, Salah ofereceu-se para acompanhá-lo; a conversa continuou. Hammad falava e Salah escutava pacientemente. Chegados à porta da pensão, este disse-lhe:
— Ouça, ostaz Hammad, tudo o que diz é muito bonito mas, infelizmente, não serve para nada.
— E porquê, ostaz Salah?
— Porque o povo sempre foi de direita!
Hammad lançou um olhar surpreendido ao seu interlocutor; continuava embrulhado na sua tristeza, mas, de repente, desatou a rir. Riu-se com ele e depois separaram-se com um aperto de mão. Foi o seu primeiro e último encontro com Salah Jahine [que assina os diálogos e as canções do filme abaixo, realizado antes da moda da burka].»



[Nota de rodapé incluída no livro:] Poeta e artista de génio multifacetado, Salah Jahine (1930-1986), renovador da poesia egípcia e de expressão dialectal, foi também autor de canções glorificadoras da revolução e de Nasser, bastante populares nos anos sessenta. Muito afectado pela derrota de 1967, minado pela depressão, acabou por se suicidar em 1986.

15/08/10

As férias literárias dos Dupondt



[Nota: afinal, o Passos Coelho não está a ler literatura da pesada — segundo a legenda, está a preparar o discurso do Pontal. Tirando isso, o que os distingue? A cor dos calções e das peúgas? A t-shirt do José versus o polo do Pedro?...]
As fotografias foram publicadas no Correio da Manhã (JC) e no Expresso (PPC).


14/08/10

As carpideiras do fogo

«Se eu fosse mau como as cobras, em vez de “Cavaco Silva e Sócrates interrompem férias por causa dos incêndios” escreveria "Cavaco Silva interrompe férias por causa das eleições presidenciais; Sócrates interrompe férias por causa de Cavaco Silva."»
Lido AQUI

12/08/10

Não sou capaz de dar título a este post

Sakineh Mohammadi Ashtiani apareceu na televisão iraniana a "confessar" o seu crime.

Teme-se que o aparecimento público de Sakineh prenuncie a sua execução eminente.
Por isso, embora assinar uma petição contra a barbárie seja o mesmo que oferecer pérolas a porcos, se ainda não a assinou (o link está aí ao lado) faça-o. Se já assinou, use agora o seu apelido do meio [quando uma pessoa está prestes a ser morta à pedrada, eu, pela parte que me toca, estou-me a borrifar para a minha honestidade (e, no limite, para a inocência dela)].
"Alguns meios de comunicação relataram o drama de Sakineh Ashtiani, uma iraniana que, acusada de adultério, incorre na pena de lapidação.O jornal El País explicava em que consiste a pena, descrita em vários artigos do Código Penal Iraniano. Dispenso-me de transcrever essa barbaridade medieval embora pense que os iluminados relativistas de esquerda e de direita os deviam ter como leitura obrigatória e castigo da distracção estival. Seja como for: a lapidação é uma forma abjecta de tortura e morte e a penalização do adultério das mulheres uma marca do atraso das sociedades em que o islamismo é religião oficial. A vigilância da sexualidade das mulheres e o seu sequestro doméstico é uma das facetas da negação dos direitos das mulheres pelo Islão contemporâneo. A demissão dos políticos e dos intelectuais dos países islâmicos deste combate civilizacional e o medo ou o silêncio cúmplice dos ocidentais são dois aspectos da mesma questão, que assombra os nossos dias. Neste momento uma mulher cujo nome conhecemos e outras, anónimas, podem ser “enterrada(s) até acima dos seios” (art 102) e apedrejadas “com pedras que não podem tão grandes que matem ao primeiro golpe, nem tão pequenas que não possam ser chamadas de pedras” (art 104)."

O delito de opinião foi cometido em primeiro mão no Delito e chega agora à Pastelaria*

Há um género de automobilistas que é assim: vai uma pessoa na estrada a ouvir e a assobiar Can’t Take My Eyes Off You completamente na boa quando aparece um tipo noutro carro e, por aselhice, desrespeito, incúria ou simples killer instinct, provoca um acidente.
Os dois carros acabam por parar em modo enviesado e após aqueles intermináveis segundos em que se vê a vida andar para trás ou, pelo menos, a não andar para a frente, o condutor que ia numa boa a ouvir e a assobiar Can’t Take My Eyes Off You leva demoradamente a mão à maçaneta da porta e lança, algo hesitante, uma perna para o exterior.
É então que à surpresa do choque se acrescenta a surpresa de ver o outro automobilista (repita-se: o que provocou o acidente) já cá fora, bem firme nos membros, vociferante e esbracejando como um pássaro à bolina: Sua besta! Então não me viu? Aprendeu a conduzir em carrinhos de choque ou quê? Por pouco, ia-nos matando aos dois! Olha-me para isto! Olha-me para isto! E etc.
Perante o segundo ataque, desta vez tão-só verbal, o condutor inocente tende a sentir-se baralhado. Será que a culpa fora dele? Será que se entusiasmara demasiado naquela parte do I love you, baby/ And if it's quite alright/ I need you, baby e fizera asneira?
Há quem chame educadamente xico-espertice a esta estratégia de avançar de goela e peito abertos para a vítima invertendo os papéis: o facto é que resulta. Nos dias que correm, em que o pragmatismo é tudo e o que conta são os “resultados por objectivos”, creio tratar-se, aliás, de uma estratégia em ascensão.
O modelo é largamente utilizado pelos políticos, e não apenas portugueses (Sarkozy e Berlusconi também seriam bons exemplos). Por cá, Sócrates e seus acólitos têm contribuído com fibra para a sua implementação no continente (a Madeira daria pano para outro post).
Neste particular, o género terá sido iniciado por Jorge Coelho com a memorável frase Quem se mete com o PS leva, continuado por Augusto Santos Silva, o que gosta de malhar, pelo par de cornos de Pinho, sem esquecer, naturalmente, Ricardo Rodrigues que, ultrapassando a alta velocidade a fase verbal-metafórica, passou à “acção directa” e gamou dois gravadores. No meio desta lista (necessariamente incompleta), também é de registar o próprio primeiro-ministro, mão na anca, e o seu Era o que mais faltava!, a que teremos de somar o finíssimo Manso é a tua tia, pá.
Não me interpretem mal. Não me move qualquer puritanismo linguístico. O que me faz espécie é a boçalidade. Ou seja, a falta de ironia, de wit. Em resumo, a falta de ideias que não sejam apenas caceteiras.
Comparado com estes boys, o Almirante Pinheiro de Azevedo era um génio. Digno continuador de António Silva, a sua entrevista enquanto primeiro-ministro do VI Governo Provisório, governo que entretanto entrara em greve, é inesquecível:
Pinheiro de Azevedo: Estou farto de brincadeiras, ok? De brincadeiras, hem!?
Jornalista: Está...?
Pinheiro de Azevedo: Estou. Fui sequestrado. Já duas vezes. Já chega. Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia, pá.




Como assinala Eric Hobsbawm em livro recentemente traduzido pela Relógio D’Água, Escritos sobre a História (e que aproveito para recomendar), após uma tendência secular decrescente ao longo de 150 anos, a barbárie tendeu a aumentar durante a maior parte do século XX, não havendo qualquer indício que nos sugira que o seu avanço tenha terminado, o que é uma forma erudita de dizer aquilo que foi igulamente notado pelo humorista Lewis Black (e que não me canso de citar): In my lifetime, we've gone from Eisenhower to George W. Bush. We've gone from John F. Kennedy to Al Gore. If this is evolution, I believe that in twelve years, we'll be voting for plants.
Não querendo, porém, parecer demasiado pessimista, concluo com o amanhã sabe-se lá. Ou como terá dito Twain: Prediction is very difficult, especially about the future.
E muito obrigada pelo convite.
ADENDA: Os recentes desenvolvimentos do inesgotável, e parece que interminável, caso fripór, talvez pudessem servir para um post que, nos antípodas deste, se debruçasse sobre estratégias comunicacionais (aposto que adoras esta palavra, Pedro) não musculadas mas cândidas. E, a propósito de cândidas, alguém sabe da Cândida?

*texto publicado aqui, em resposta a um amável desafio

Os antibióticos foram a grande revolução do século XX mas deve andar por aí muita gente a amaldiçoar o Selman

O melhor talvez seja deixar de tomá-los e morrer mais cedo outra vez.
A propósito disto.

11/08/10

Se isto não é a silly season que o josé sócrates ganhe as próximas eleições com maioria absoluta

Primeiro foi aquele episódio do funcionário do Tribunal do Montijo que não sabia inglês (e por isso terá devolvido a correspondência sobre o fripór a Inglaterra...)
Depois foi a Organização Mundial de Saúde que veio anunciar com pompa e circunstância o fim da pandemia de gripe A (a tal que, segundo o presidente da Comissão da Saúde da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, Wolfgang Wodarg, nunca sequer existiu).
Entretanto, parece que além de mim, a Ana Gomes também gostava se saber onde pára a Cândida.

09/08/10

A book a day keeps the doctor away: "O Papagaio de Flaubert", Julian Barnes

O papagaio de Flaubert antes de ser de Flaubert, ou sequer de Barnes, foi de Félicité, a eterna criada de madame Aubain retratada pelo mestre em Um Coração Simples, conto extraordinário, perfeito, como quase tudo o que saiu da pena do autor de Madame Bovary.
Tantos anos passados, o inglês Geoffrey Braithwaite atravessa o Canal (Barnes, o próprio, fá-lo-ia também para escrever precisamente o conjunto hilariante de histórias Do Outro Lado do Canal) com o objectivo de observar, in loco, o papagaio que havia servido de inspiração a Flaubert.
O animal está embalsamado, tal qual ficaria no final de Um Coração Simples, a ordens de Félicité que se iria também pouco depois, confundindo beatificamente a ave com o Espírito Santo.
Mas será o papagaio do Museu de Rouen, de facto, o de Flaubert? Assim parece mas, entretanto, um outro papagaio...
Julian Barnes, francófono assumido, escreve aqui um genial ensaio, apresentando-o sob a forma de romance, numa mescla de géneros que dá ao conceito de híbrido um sabor irresistível. Se toda a gente soubesse falar assim dos clássicos, estes conquistariam de certeza o coração de mais leitores. Primeira conclusão.
Segunda: Barnes é um grandessíssimo escritor. Vencedor de vários prémios, O Papagaio de Flaubert foi agora reeditado. Educação sentimental que mistura biografia com humor (a rodos) e envereda descontraidamente pelo pastiche, pelo policial (?), levando-nos a concluir pela impossibilidade das respostas definitivas, o livro questiona o mestre para lhe dar razão.
O obcecado pela objectividade do “mot juste”, o defensor convicto do apagamento do autor (apesar do paradoxo de “Madame Bovary c’est moi”), é esquadrinhado por Braithwaite, seu fã incondicional, que busca o homem por detrás da obra. Mas qual o papagaio que se pode reclamar, realmente, do eremita de Croisset?
Se há título que consegue aliar divertimento e inteligência é este. Porque o texto, claro, é digno do seu objecto.
O Papagaio de Flaubert, Julian Barnes, Quetzal, 2010

07/08/10

Tantos anos de luta pela emancipação feminina e afinal mantém-se aquela coisa de atrás de um grande homem estar sempre uma grande mulher? Ora bolas.

Segundo notícia do Expresso, Cândida Almeida concordou com a inclusão das perguntas a Sócrates no despacho que põe fim ao caso Fripór. Terá sido essa a contrapartida de o primeiro-ministro não ser incomodado.

A propósito do beirão honesto eis porque prefiro os escritores aos políticos ou seja a coisa está sempre nos pormenores

Escrevo isto depois de ver na SIC uma longa entrevista com o procurador-geral da República, Fernando Pinto Monteiro. De várias coisas que retive do que fui ouvindo, deixo aqui duas…
Primeira, a questão de a justiça ser igual para todos, ou seja, os criminosos, independentemente de serem ricos ou pobres, influentes ou não, mais ou menos conhecidos, devem ter um tratamento igual; sabe-se que as coisas não funcionam exactamente assim por cá, mas saúda-se as boas intenções do procurador.
Segunda coisa, o telemóvel. Não a questão das escutas, mas uma confissão que me pareceu absolutamente despropositada (deu-me a ideia de que feita sem perceber o quanto significavam as suas palavras entremeadas com um sorriso disfarçado de quem acha que foi mais esperto do que os outros).
Na parte em que foi entrevistado na aldeia natal (Porto de Ovelha), Pinto Monteiro disse que era por causa dele que lá havia rede de telemóvel. Uma gentileza que a TMN teve para com ele, conforme explicou (a entrevistadora, Conceição Lino, achou graça).
Deve-lhe dar muito jeito, ao procurador, pois vai a Porto de Ovelha todos aos anos, cinco ou seis dias no Verão e ainda na altura do Natal, havendo também anos em que vai na Páscoa. Imagine-se se a Procuradoria-Geral da nossa República ficasse em Porto de Ovelha, imagine-se aquilo que não haveriam de instalar na aldeia…
Eu também gostava que a TMN — o meu operador — tivesse a mesma atenção comigo, e nem é na zona para onde vou uns quantos dias por ano. Não, é mesmo onde moro, o ano todo.
Se pudessem trazer até aqui a rede, apesar de eu não ser procurador-geral de nada, eu agradecia. Já que para os crimes somos todos iguais (custa-me a acreditar, mas enfim…), para a rede de telemóvel não faria sentido que também o fôssemos?
António Manuel Venda, aqui

Relax: Charles Aznavour e uma bebida fresca

06/08/10

Da justiça em portugal e não não me refiro ao fripór

Veio recentemente a público esse caso de sucesso exemplar em prol da saúde pública que foi a apreensão de 500 bolas de berlim nas praias algarvias!!!
Agora que quatro desgraçados estão internados nos Capuchos correndo o risco de cegar, após terem sido operados numa clínica em Lagoa que nem sequer tinha licença para vender patas de veado, os por favor, por obséquio, peço desculpa, espero não incomodar, dominam nas declarações dos responsáveis Francisco Mendonça (delegado regional de saúde do Algarve) e Francisco George (director-geral de saúde).
O primeiro, apesar de reconhecer (a contra-gosto) que a I-QMed não estava sequer licenciada, não se coíbe de dizer estas coisas extraordinárias:
"A ARS do Algarve só teve a informação de que quatro doentes teriam sido intervencionados nesta clínica e que estariam internados num hospital em Lisboa. Perante esta notícia, como medida cautelar suspendeu-se a actividade da clínica";
"Nós tivémos esta informação no dia 27 de Julho mas nesse dia a clínica já estava fechada para obras. A clínica ainda recebeu a notificação da ARS no dia 28 de Julho e só poderá reabrir depois de apurados os factos pela inspecção-geral de saúde e depois de estar devidamente licenciada".
Resumindo
1. as bolas de berlim que nunca deixaram ninguém indisposto são apreendidas e ponto final;
2. uma clínica que anda a brincar aos médicos é suspensa quando ela própria já se suspendeu...
Como dizem em Alvor (que não é assim tão longe de Lagoa): Que te desse uma traçã no beraco desse cu, que tevesses sem cagar oito dias e quando cagasses só cagasses figos de pita inteiros.

Post dedicado ao Ali que o pariu: é pena que só se invadam países por causa do petróleo e nunca em defesa da música


Fez-se um alarido por causa da proibição da burka em França. Mas quando um troglodita chamado Ali Khamenei vem dizer que a música "não é compatível" com os valores da república islâmica não há quem lhe dê com um piano em cheio no turbante.
E só espero que nenhum adepto do "multiculturalismo" retardé, surdo ou não surdo, venha tentar perceber qual o tipo de música incompatível...

04/08/10

O inquérito do inquérito ao inquérito

Eu, que não sou a rainha de Inglaterra nem de intrigas e que derivado ao calor tenho sérias dificuldades em escrever postes inteligentes, quero aqui declarar a minha compreensão total para com o autor destas linhas

Isto será definitivamente um mundo melhor quando o último ‘procurador-que-nunca-encontra-nada’ for enforcado nas tripas do último ‘magistrado-que não-julga-nada’, que por sua vez será pendurado nas tripas do último ‘bófia-que não-investiga-nada’... (roubado nesta caixa de comentários).

Desculpar-me-ão o desusado radicalismo mas a silly season, o pinto monteiro, o fripór e os lopes da mota & silva pereira não dão para mais do que isto.

01/08/10

Este post é assim uma espécie de resposta a um post do Daniel Oliveira

O silêncio é o modo como o chamado "multiculturalismo" resolve os impasses morais a que o conduz o seu relativismo. Ou muito me engano ou nenhum dos partidos que, em Portugal, fazem bandeira política da igualdade e dignidade das mulheres (e dos direitos humanos em geral) se manifestou ainda sobre a condenação, no Irão, à morte por apedrejamento de Sakineh Ashtiani, de 43 anos, acusada de alegado adultério.
"Adultério", em regimes islâmicos como o do Irão, é qualquer relação sexual fora do casamento, abrangendo não só pessoas casadas como viúvas ou divorciadas e homossexuais. Até ser-se vítima de violação é "adultério".
Em 2008, na Somália, Asha Ibrahim, de 13 anos, foi levada para um estádio e ali publicamente apedrejada até à morte pelo "crime" de ter sido violada. Para prolongar a agonia e sofrimento dos condenados, o art.º 104.º do Código Penal iraniano manda que as pedras "não podem ser tão grandes que matem imediatamente, nem tão pequenas que não possam ser classificadas de pedras". Nada disto incomoda a boa consciência "multicultural". O que a incomoda é a proibição da "burka" em França.
Manuel António Pina, aqui.

O post do Daniel Oliveira chama-se, que nem a propósito, "Como sabemos, a França estará sempre na linha da frente dos direitos humanos e dos direitos das mulheres e pode ser lido (e visto) aqui.

A book a day keeps the doctor away: "Terezín", Daniel Blaufuks

A relação particular do fotógrafo Daniel Blaufuks com a “questão judaica”, vamos chamar-lhe assim, é pública e conhecida.
Oriundo de uma família alemã mas não suficientemente ariana, e por isso obrigada a fixar-se em Lisboa em 1936 (a que se acrescentam raízes polacas pelo lado dos avós paternos), Blaufuks já anteriormente mergulhara nesses anos de chumbo quando em 2002 apresentou Sob Céus Estranhos (título que fora de Ilse Losa, outra refugiada do nazismo).
Subjectivo e comovente, o filme tinha como fio condutor a experiência da sua própria família, servindo-lhe de cenário esse país estranho chamado Portugal, finisterra por onde passariam milhares de refugiados judeus, outros tantos seriam impedidos de entrar e uns escassos 50 adoptariam como casa alternativa.
Depois há a literatura. Por exemplo: no início da já longínqua década de 90, do seu encontro com o escritor Paul Bowles – o exilado voluntário de Tanger autor do maravilhoso O Céu que nos Protege – resultaria My Tangier (Difusão Cultural).
Em Terezín aposta-se de novo num projecto transversal: texto, fotografia e cinema. O texto (disponível apenas em inglês), explicativo e desmistificador, relata a sua própria génese, resultado do cruzamento do romance de W. G. Sebald, Austerlitz, com os diários de Ernest K, dois encontros ocasionais que acabariam por conduzir Daniel Blaufuks ao campo de concentração de Theresienstadt, hoje Terezín, a cerca de 60 km de Praga.
Tudo começou com a imagem de uma misteriosa sala de arquivo reproduzida por Sebald em Austerlitz. Sala que Daniel Blaufuks acabará também por registar, para cá do vidro, e que faz parte agora, praticamente intacta, do pequeno museu de Terezín. A partir daí, o fotógrafo iniciou a viagem possível.
Theresienstadt, campo-modelo, cidade-gueto exemplar onde o horror se disfarçava sob imagens de felicidade e harmonia (a Cruz Vermelha visitou Theresienstadt e deu-lhe a sua benção). Para que a mentira fosse perfeita, fez-se um filme.
É em torno desse documentário (cujo realizador e actores acabariam nas câmaras de gás em Auschwitz), e do qual sobreviveu película bastante, que se organiza o segundo pólo do trabalho de Blaufuks; matéria de propaganda onde os prisioneiros aparentam viver uma existência livre e banal, as crianças brincam e os homens jogam futebol – a prova radical que não há imagens inocentes.
No DVD incluído no álbum, Blaufuks desacelerou as imagens, cumprindo assim o desejo de Jacques Austerlitz, o protagonista do romance de Sebald, que nelas buscava obsessivamente o rosto da mãe. Pintou-as de vermelho, deu-lhes a cor do sangue e do J dos passaportes, e mostra-as ao espectador de hoje. Corpos expurgados de identidade. Um desfile grotesco de memórias falseadas. Rostos que Blaufuks se propõe resgatar. Gente que um dia teve nome e que, apesar de morta, nos interpela finalmente com a verdade possível.
Eloquente.
Terezín, Daniel Blaufuks, Tinta-da-China/ Steidl Publishers, 2010