31/07/09

A Fátinha lá foi à vida dela e viva o estado de direito

Agora ficam a faltar, assim que me lembre, os casos de Isaltino Morais, Carolina Salgado (ou será Pinto da Costa?), Mesquita Machado (ou é que não há caso?), da Casa Pia, dos Submarinos, do Fripór, BPN, Portucale, Bragaparques...
Com sorte e celeridade, ainda reabrem o caso Maddie e conseguem julgar o puto da rua de cima apanhado a abafar a mercearia.

30/07/09

Também não é preciso tanto exagero e não, não é um post sobre as promessas eleitorais de José Sócrates

Retirado de «8 Regras para um casamento picante» e é logo a número 1
Seja afectuoso. Os especialistas dizem que os preliminares, nas mulheres, começam uma semana antes.
Revista Única, Expresso, 25 de Julho de 2009

27/07/09

Sócrates em campanha: já nem na blogosfera pode uma pessoa estar descansada

Registo, com o acrescento dos bolds:

Pouco passava das 17h30 quando José Sócrates entrou na LXFactory, em Alcântara, Lisboa, para se encontrar com vários bloggers portugueses. A «reunião» devia ter sido seguida na Internet, através do site www. socrates2009.pt, mas a transmissão correu mal e ninguém conseguiu assistir online.
Para Sócrates, os bloggers «fazem o possível por transformar a liberdade dos seus blogues numa liberdade respeitosa».
«Bem sei que há exageros, mas o exagero faz parte do início da liberdade que os blogues constituem. Tenho esperança que a segurança que cada um dos bloggers vai sentido se transforme também em responsabilidade», reforçou.

23/07/09

Um qualquer Outubro na algibeira

Quando dizemos «Outubro», soltamos evocações. Apesar de longínquo, o estrépito da fuzilaria imaginária disparada em São Petersburgo sobre o Palácio de Inverno ― que Annenkov e depois Eisenstein encenaram, tornando-o «real» ―, chega-nos ainda aos ouvidos, distribuindo posições de combate e rearmando certezas. Mas porque regressar aqui a acontecimentos que, fora do universo protegido dos prosélitos mais irredutíveis da revolução proletária, nos chegam sobretudo como um rumor épico que a ficção, o documetário e os compêndios de vez em quando libertam? Talvez valha a pena fazê-lo porque eles se referem a um tempo e a um lugar onde foi possível acreditar na materialização de uma das mais antigas intenções humanas: o advento de uma época afortunada, no qual a luta entre o bem e o mal tenha sido resolvida com a vitória irrevogável do primeiro. Instante de uma «luta final» rumo a uma nova era, o Outubro ideal do qual aqui se fala condensou, e a sua dimensão simbólica ainda hoje representa, uma parte daquilo que de melhor a humanidade tem sido capaz de conceber como destino.
Enquanto sinal de utopia, mobiliza as capacidades do ser humano para traçar colectivamente um mundo alternativo, desejavelmente melhor, e o facto de ter dado historicamente lugar a universos tristes e bloqueados, a regimes rudemente tirânicos, a experiências concentracionárias com o rosto negro do mal, não foi suficiente para desactivar o seu potencial criador. A Revolução de Outubro não representa apenas aquele episódio datado que na velha Rússia recém-liberta do domínio dos czares levou Lenine e os bolchequives ao assalto do poder: permanece também como sinal de esperança que nem mesmo a perversão e a derrocada do «socialismo real», e a acelerada transformação do mundo que se lhe seguiu, foram capazes de apagar. Porque, como se poderá ver nas páginas que seguem, a vontade que ela enunciou continua a produzir uma expectativa e a desenhar uma possibilidade.
Importa salienta que este livro, retomando com aperfeiçoamentos e curtas adendas um conjunto de textos escritos e plublicados no blogue pessoal A Terceira Noite ― um a um e sem plano prévio, de Setembro a Setembro nos anos de 2007 e 2008 ― não tem o formato de um estudo histórico clássico capaz de integrar processos exaustivos de pesquisa, análise e comparatibilidade. Partindo de dados objectivos e de muitas leituras sobre a matéria, trata-se antes de um ensaio que pode contribuir para a superação de algumas das perspectivas acríticas da Revolução de Outubro e da pesada mitologia produzida e conservada à sua volta. Reportando-se a factos mas integrando também, recolocando-as sem qualquer dogmatismo, memórias e crenças que continuam a moldar algumas das preocupações contemporâneas. Afinal, para uns quantos de nós ― talvez não muitos, mas uns quantos que não se conformam com o mundo tal qual ele é ―, haverá sempre um Palácio de Inverno para tomar.
Um agradecimento dirigido a todos os que me incitaram a escrever até ao fim este conjunto de textos e a publicá-los em livro. Destacando o apoio próximo e crítico da Adriana Bebiano e do Miguel Cardina. Também eles, ao que julgo saber, com um qualquer Outubro na algibeira.
Outubro, Rui Bebiano, 2009, Angelus Novus
[Os bolds são meus]

22/07/09

É sobre o Simplex e não se fala mais nisso

Ao princípio levei um certo tempo a perceber a coisa. Depois fui lá: SIMplex de Simplesmente PS... Xim Plex... Sim PS... e por aí fora.
Também fui lá ― literalmente. Ao SIMplex. Ao blog. Li o Manifesto.
Para além do apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, único tema fracturante referido e que, pelo que percebi, não é consensual (grande parte dos colaboradores do SIMplex apoia), tudo o resto me deixou ― como dizer? ― perplexa.
Perplexa com a banalidade. Como se bastasse, entrados no século XXI, ressuscitar os princípios do welfare state... odiar o Santana Lopes... e já está!
Vejamos.
Os proponentes do Manifesto são pela liberdade. Incluindo a religiosa. Pelo Estado laico. Pela igualdade dos géneros (agora não se diz sexos, eu sei...). São pelo conhecimento. Pela inovação. Pela ecologia.
São contra os mitos salazaristas e as utopias revolucionárias. As soluções caudilhistas.
Acreditam num socialismo moderno. Não gostam da Manuela Ferreira Leite.
Esclarecendo o ponto: querem que o PS ganhe as próximas eleições, de preferência com maioria absoluta.
E depois, ou antes, tanto faz, tem aquela parte que diz assim:
Vemos no PS, e sobretudo em José Sócrates, capacidade de mudança e modernização. Sem a tentação miserabilista da direita e as utopias irresponsáveis da extrema-esquerda.
Aí fiquei confusa. Mais do que perplexa. Ainda estou a tentar perceber...
Porque a parte do SIMplex já tinha percebido. Não fora o Edson Ataíde ter inventado o Tou Xim! nos anos 90 e seria um grande slogan...

20/07/09

Não sei se isto é uma história com moral mas de repente pareceu-me uma parábola de qualquer coisa embora também possa ser apenas cansaço ou assim

A palavra intelectual já foi mais bem vista. A história recente da Europa terá contribuído alguma coisa para isso. Julgo. Ainda assim, haverá quem a reverencie. Por exemplo, o passageiro que este fim-de-semana se me dirigiu no comboio:
― A senhora parece-me uma intelectual. Acho que pode ajudar-me.
A adjectivação resultaria de dois factos meramente circunstânciais. Um, é que vinha a ler um livro no comboio; o outro é que estava a usar os meus óculos de ver ao perto sem os quais qualquer obra-prima se esfuma inevitavelmente no mais denso hermetismo.
Surpreendida ― não foi assim há tanto tempo que os taxistas me chamavam menina e eu dispensava óculos ― olhei para o homem e depois olhei para o panfleto que ele exibia para que eu o lesse. No título, a bold, estava escrita uma frase que acabava em ortopedia.
O homem explicou-se:
― Tem que ver com ossos, não tem? É que eu gostava de aprender sobre isso, sobre músculos e massagens e assim...
Não sei porque carga de água, embora estivesse a ver com toda a clareza a palavra ortopedia escarrapachada na folha, pensei em oftalmologia. Respondi:
― Não, tem que ver com olhos...
― Ah! ― suspirou ele ― e avançou profundamente abatido (pareceu-me ler isso na curvatura das suas costas) na direcção da saída.
Estava o dedo do homem a meia dúzia de centímetros do botão de abrir as portas, quando me dei conta do disparate. Larguei o Bullet Park do John Cheever no banco (e abro aqui um novo parênteses para o recomendar), corri para o homem e quase gritei:
― Desculpe, desculpe! O senhor tinha razão. A ortopedia trata os ossos, oftalmologia é os olhos... Enganei-me... Desculpe...
Fez um sorriso rasgado.
― Bem me parecia! Bem me parecia! Mas muito obrigado! Muito obrigado!
E desceu em Alcântara, continuando a agradecer-me da gare, enquanto eu permanecia de pé no comboio, confesso que invadida por um certo desconforto sem saber o que fazer às mãos.

19/07/09

Ainda a FLIP: do acordo ortográfico à volubilidade das massas

O encontro tinha como tema o Acordo Ortográfico. A mesa opunha-se.
O jovem angolano Ondjaki dizia-se conformado mas era contra, o jovem brasileiro Marcelino Freire dizia-se revoltado e era contra.
A conversa enveredou rapidamente para a sexologia.
Marcelino Freire disse que ainda assim preferia um acordo pornográfico, para saber onde metia a língua; Ondjaki disse, parafraseando Pessoa, que a minha pátria é a minha língua numa portuguesa. Um elemento do público indignou-se por terem tirado o trema da minha linguiça (que levava trema no Brasil) e o público, ao rubro, aplaudia ruidosamente.
No meio da galhofa, um português sisudo e bem entradote pediu a palavra. Apresentou-se como fundador da Universidade Lusíada de Lisboa, puxou de uma data de galões que não consegui registar e defendeu inflamado o Acordo, chamando reaccionários e patrioteiros aos seus opositores.
O mesmo público, incluindo os elementos da mesa, aplaudiu ruidosamente.
Eu, que já era contra o Acordo antes, saí de lá ainda mais depois. E confirmei a minha fobia às reuniões de massas. Mesmo as alfabetizadas.

18/07/09

Das aves aos porcos ou da psicose gripal ao negócio das vacinas

Uma criança de 10 anos, cujos sinais exteriores de doença se resumiam a febre alta, terá sido tratada de forma desumana no Centro de Saúde de Boticas e no Hospital de São João do Porto. Há cerca de um mês, Dona Alice, a senhora que me ajuda cá em casa a minorar o caos doméstico, também fora recambiada para o hospital, no caso dela para Santa Maria, por apresentar os mesmos sintomas. Acabaram por lhe diagnosticar uma carrada de anginas. No Brasil, onde aterrei no final do mês passado, um grupo insólito de mulheres e homens mascarados aguardava os passageiros à chegada, presenteando-os com panfletos sobre a nova gripe que, alí, continua a ser suína.
Do comunicado que, entretanto, a Ordem dos Médicos emitiu sobre o caso do Porto, sublinho a parte em que, referindo-se à gripe A, se afirma ser uma doença pouco grave e similar, nas suas manifestações clínicas, às banais gripes.
Só que a doença banal, apesar da saudável sobriedade com que a Ministra da Saúde tem vindo a tratar o assunto, parece estar a favorecer uma psicose colectiva em que, ao mais pequeno achim! o alarme dispara (não queiram saber a cara de pânico dos passageiros quando, por causa do ar condicionado, espirrei duas vezes no avião).
Li ontem que o Estado português vai comprar três milhões de vacinas pela módica quantia de 45 milhões de euros, ainda assim nada que se compare com os 700 milhões de euros que o Estado francês está disposto a desembolsar.
É um facto que com a saúde pública não se brinca nem se deve olhar a despesas. Mas será muito inconveniente perguntar se o destino destas vacinas ficará tão secreto como o das adquiridas pelo governo para combater a anterior pandemia também pitorecamente baptizada, no caso de gripe das aves?
Recorde-se que já o ano passado, e dada a validade de três anos da medicação, se discutia o que fazer aos 2,5 milhões de doses, armazenadas, penso que até hoje, em local desconhecido, e adquiridas então por 25 milhões de euros.
Resta um consolo: comparando a relação preço-quantidade, no caso da gripe das aves deve ter sido um bom negócio!

15/07/09

Fragmentos de um discurso amoroso (não, não é Roland Barthes, é Domingos de Oliveira)


"Há pessoas que sofrem com separações, outras, muito mais raras, se alegram com isso. Realmente uma separação é sempre um alívio. E alguns logo encontram a 'solidão magnífica', conforme chamou Freud. Mas não sou esse tipo de pessoa e para os homens comuns, separação dói muito.  
O assunto não me é estranho porque já fiz um filme sobre ele e também porque tive cinco casamentos e cinco separações. 
No entanto não tenho nada a dizer sobre o assunto. Há coisas assim, quanto mais se vive ou mais se pensa, mais obscuras ficam.  
Na primeira separação, tinha uns vinte e poucos anos. O nome dela era Eliana. Me desarticulei tanto que não podia sair na rua, achando que os edifícios cairiam sobre mim. Lembro também que foi nessa época que descobri a psicanálise, e logo depois o álcool. Na boemia, no tempo sem tempo da boemia, procurava aflitamente o Amor. Quebrei minha mão dando um soco na parede e fui à sessão de psicanálise tocar uma flauta de plástico que alguém me deu, com a mão engessada. Quero dizer que sofri muito.  
Na minha segunda separação sofri muito. Tinha três namoradas ao mesmo tempo, e brochava com as três. O nome dela era Leila. Em vez de tocar a flauta, fiz um filme, 'Todas as Mulheres do Mundo'. Ninguém duvide disso: períodos de separação são em geral altamente produtivos.  
Minha terceira separação, Nazareth, eu tinha quarenta e poucos, sofri muito e não teve graça nenhuma. Eu estava sem dinheiro e vivia minha vida nos corredores dos bancos adiando promissórias, parcelando dividas, movido por anfetaminas. Naquela época eram vendidas como remédio para emagrecer.  
Meu quarto casamento, Lenita, durou dez anos e tive uma filha. Maria Mariana. Na quarta separação tinha quase cinquenta, tive poucas namoradas, poucas porém boas. 
Até que há vinte e oito anos atrás, casei com Priscilla, adorável criatura que me acompanha até hoje. E lá pelo oitavo ou décimo ano de casamento, passamos um ano separados. Se eu tinha desarticulado na primeira, nessa ultima desagreguei, quero dizer, sofri muito. Mas sempre produtivamente. Essa experiência resultou num filme, 'Separações'.  
Se eu cito esses dados biográficos nesta palestra, é apenas para tentar perceber o que há de comum entre essas cinco malditas porém necessárias passagens. Na verdade quase pode ser dito que todo homem solteiro quer casar assim como todo casado quer ficar solteiro. Não conheço nenhum casal decente que não nutra um sólido desejo de separação. Faz parte de um bom casamento, creio. Afinal, o amor tira a liberdade, sem dúvida. O que é inadmissível. E a solidão muita vezes é desagradabilíssima e vazia. Enfim assim vamos todos, amando e desamando, carneirinhos à espera do corte.  
A pergunta que faço hoje em dia a respeito do assunto é sobre a possibilidade de amar, casar e separar sem sofrer. Muito me perguntei sobre o mistério da dor do amor. Para tentar entender a dor do amor existem três indagações sobre o amor, ele mesmo.  
Primeiro. Porque o amor (a paixão) acaba? Infinita enquanto dura, mas não dura. É por esquecimento de si mesmo? Porque sendo explosão, com tempo se atenua? Porque, tendo dado ao amante sua chance de eternizar-se, não tem mais nada a fazer ali? 
A segunda indagação vai mais direto ao ponto: porque dói tanto quando o amor acaba? Porque é tão triste? Porque é inaceitável? Nenhum raciocínio ou vivência autorizou a crença de sua perenidade? Porque afinal nos dilaceramos? Ah, a dor do amor. É mais que uma angústia. É uma febre, uma desidratação. Poucas coisas são tão tristes quanto o fim de um grande amor. Talvez nem o fim da vida seja tão triste. E o que dói? Onde dói? Dói por não ser mais o que era. Dói por tudo que poderia ser, se ainda fosse, mas não será jamais. Dói a perda da paixão, única moeda cósmica que temos a nossa disposição. Porém, acalmemos. Deve haver um motivo objetivo para tanta dor. Examinemos metodicamente uma a uma as perdas.  
O que se perde quando é perdido um amor? Talvez a moeda cósmica? Não, não deve ser isso. Todos os homens sofrem separações e nem todos se importam com o cosmos.  
A perda do objeto sexual? Também não deve ser isso. Há muitas Marias para cada João.  
Qualquer coisa ligada a ciúme de terceiros? Mas há separações que não envolvem terceiros, nem por isso deixam de ser sofridas.  
Tão pouco são irrazoáveis as explicações psicológicas, quebra da fantasia, falência de um investimento sentimental ou qualquer coisa desse tipo. Mas também não é isso. Homens maduros, estudiosos, que certamente ultrapassaram esse tipo de acontecimento psicológico também sofrem como cães envenenados.  
Aprofundemos essa espiral.  
Talvez o horror da solidão quando convivemos muito com a pessoa amada, perdemos totalmente a noção de como somos sós no mundo. Nossa íntima alegria ou dor é compartilhada, ganhamos um ouvinte interessado e perder isso, convenhamos, é perder muito.  
Talvez o medo da liberdade, citando Dostoievski, meu caro companheiro desde a adolescência, 'Não há nada que o homem deseje mais do que a liberdade, nem nada que lhe seja tão doloroso'.  
Na terceira indagação sobre o amor pergunto se ele é necessário. Na pesquisa da verdade todas as hipóteses devem ser levantadas, mesmo as deselegantes. Existirá mesmo um grande homem só? Não será um homem um animal a dois? Como intuíam os antigos gregos, um ser cuja biológica natureza verdadeira é ser parte de uma unidade maior, chamada casal. Se a função da hipótese é responder a paradoxos, esta é a meritosa, posto que pelo menos explica a dor do amor. Dói porque falta uma parte, tanto quanto doeria se nos arrancassem um braço ou um olho. Quando escrevi o roteiro do filme 'Separações' eu tinha farto material a respeito. Tanto retirado da minha vivência quanto daquela dos amigos, mas não conseguia fechar a história. Somente pude fazê-lo quando lembrei da Kubler Roth e de suas fases pelas quais obrigatoriamente passa um doente terminal. Quando reparei que elas podiam coincidir com as fases do meu herói ridículo num período de separação, o roteiro ficou resolvido. Somente é possível comparar a separação de dois amantes com a morte de um homem.
No filme minha ordem é: a negação ('Não! Não pode ser! É mentira, ela vai voltar. Foi uma briguinha à tôa.'), a negociação ('Se ela voltar para mim eu paro de fumar, subo os degraus da Penha, nunca mais vou ser galinha'), a revolta (“Quero te matar, sua puta!”) e a aceitação, que é quando se arranja outra namorada. Ou então a mulher volta. Observe que tomei certas liberdades com a Kubler Roth. Inverto a ordem, que é: a negação, a revolta, a negociação, a depressão e a aceitação. E dou por subentendida a fase da depressão.  
Bem, espero que quem não viu possa ver o filme. É muito engraçado ver aquele homem arrastando-se pelo chão, pagando todos os micos possíveis para recuperar a mulher amada.  
Hoje tenho 72 anos, continuo querendo me separar da Priscilla, e ela de mim naturalmente, posto que somos normais e tenho a impressão que poderíamos fazer isso alegremente sem nenhum ciúme e nenhuma dor. Tenho essa exata impressão e com a mesma convicção que não acredito absolutamente nela. Morro de medo de me separar da Priscilla. Creio, concluindo, que é uma questão genética. Há homens que nasceram para viver sozinhos, e certamente não sou um deles. A verdadeira arte de viver talvez seja tentar ser aquilo que você é. O que evidentemente é muito difícil.
Me aguardem no meu próximo filme, é uma espécie de continuação de 'Separações'. Acompanhando o casal, até digamos assim, o fim. Titulo: 'Inseparáveis'."

Texto de Domingos de Oliveira (dramaturgo, cineasta e actor brasileiro) lido pelo próprio na FLIP 2009

13/07/09

A tal de FLIP

Não perguntei à própria e, ainda assim, apostaria uma rodada de cachaça em como Dona Margarida não assistiu à conversa do brasileiro Silio Boccanera com Richard Dawkins. 

O cientista ateu que, à imagem dos Beatles, corre o risco de se tornar mais famoso do que Jesus Cristo apresentou-se na FLIP no dia 2. Na manhã seguinte, enquanto ele se aventurava mar dentro na companhia do navegador que fez em solitário a primeira viagem de circum-navegação do mundo – certamente o mais notável habitante de Paraty, Amyr Klink –, Dona Margarida, a responsável pelo meu café da manhã, despedia-se assim: “Num momento em que se fala tanto de literatura em Paraty, também eu quero-te falar do meu autor”. Pausa. “Do autor de todos os autores...” Nova pausa. “Deus!” E, dito isto, ofereceu-me dois exemplares da “Sentinela”.

É pouco provável que Dawkins e Dona Margarida venham alguma vez a confrontar ideias, pensei. Na noite anterior, ao invés, era isso que esperava do debate com o autor de A Desilusão de Deus. Aconteceu outra coisa. Uma entrevista em registo leve e simpático que lhe permitiu recordar algumas das suas conhecidas ideias sobre ateísmo e religião, com um único momento realmente esclarecedor, quando o criador dos “memes” discorreu sobre darwinismo social: “Os que me acusam de partilhar essa visão, talvez se tenham limitado a ler o título de O Gene Egoísta esquecendo-se de consultar as notas de roda-pé, ou seja, o livro”. A plateia riu-se e eu com ela. Mas o que gostaria mesmo era de ter assistido a uma conversa entre Dawkins e Damásio. Não cabia no programa. Embora o programa fosse extenso.

A Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) começou no dia 1de Julho. Começou bem. A conferência de abertura esteve a cargo de Davi Arrigucci Jr., professor e crítico brasileiro (tido por Julio Cortázar como um dos melhores intérpretes da sua obra), responsável por vários estudos e ensaios sobre Manuel Bandeira (1886-1968). O poeta que um dia ameaçou ir-se embora para Pasárgada era o homenageado da 7ª edição da FLIP e Davi Arrigucci Jr. deu sobre ele uma aula magistral, daquelas que mete tudo: generosidade, inteligência, amor e erudição.

Sujeito de outras conversas, nomedamente de uma que reuniu três representantes da nova poesia brasileira – Heitor Ferraz, Eucanaã Ferraz e Angélica Freitas – e de uma evocação sentida feita em conjunto por Edson Nery, 87 anos, amigo e intelectual estudioso do poeta, e Zuenir Ventura, 78 anos, jornalista e ex-aluno do pernambucano, o homem que em 1930 versejava Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado/ Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente/ protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor./ Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário/ o cunho vernáculo de um vocábulo./ Abaixo os puristas saiu (poeticamente, falando) em braços quando Edson Nery gritou no final para uma plateia ao rubro: “Viva Manuel Bandeira!”. 

Se no que toca à poesia pouco mais aconteceu no programa oficial, ficcionistas não faltaram. Edna O´Brien, que encerrou a sua participação na FLIP lendo um poema dedicado a Barack Obama e cujo livro de estreia em 1960, Country girls, se viu banido pela igreja do seu país, juntou-se a Anne Enright, vencedora surpresa do Man Booker 2007 com Corpo Presente, (traduzido pela Gradiva). Ambas irlandesas, trouxeram ao Brasil o país de Joyce, tanto as suas mitologias literárias como as suas realidades mais negras. 

Os brasileiros estiveram presentes em força. Claro. Destaque (pessoalíssimo) para a prestação de Domingos de Oliveira (dramaturgo e cineasta) e para os escritores Cristovão Tezza (autor da Gradiva), Bernardo Carvalho e Milton Hatoum (os dois editados em Portugal pela Cotovia, que também publicou entre nós os referidos Angélica Freitas e Heitor Ferraz; Carlito Azevedo, da revista literária “Inimigo Rumor”, responsável em Paraty pela “Oficina Literária”; assim como Tatiana Salem Levy, nascida em Portugal em 1979 de pais brasileiros refugiados políticos, presente na FLIP a pretexto do seu livro A Chave de Casa, finalista do prémio Portugal Telecom de literatura de 2008). Quanto a Chico Buarque, cujo último e excelente romance, Leite Derramado, acaba de ser lançado também em Portugal pela Dom Quixote, fez frisson. A plateia, esgotadíssima, rendeu-se-lhe: uns às palavras, outros (sobretudo outras, desconfio) aos olhos verdes. 

Os franceses chegaram com uma delegação disposta ao escândalo, se excluirmos do pacote o afegão Atiq Rahimi que trocou, entretanto, o persa pelo francês, vencedor do prémio Goncourt 2008 pelo seu Syngué sabour - Pierre de patience e cujas obras estão traduzidas entre nós pela Teorema. 
O voyerismo do público não poupou Catherine Millet, autora do autobiográfico A Vida Sexual de Catherine Millet (ASA), Sophie Calle, artista conceptual que Paul Auster usaria como personagem em Leviatã, e Grégoire Bouillier, escritor e ex-namorado da própria Sophie Calle. Os limites entre ficção e vida privada foram assunto de debate, o que também viria à baila aquando da conversa com o jornalista americano Gay Talese, representante emblemático do new journalism, ou com o mexicano Mario Bellatin (a quem, estranhamente, ninguém perguntou por Vila-Matas) O assunto tem muito que se lhe diga, mas quase tudo ficou por dizer. À reflexão preferiu-se uma abordagem a roçar o estilo "People", sinal talvez dos tempos e/ou da multidão que arrasta a FLIP, muito longe já dos seus primórdios mais íntimos ou mais literários. Como se preferir.

Ao “show off” conseguiu fugir Lobo Antunes, um dos nomes mais aguardados. Conquistou a assistência falando largamente das suas raízes brasileiras mas não se ficou por aí. Falou de literatura. Falou de livros. Assuntos que nem sempre foram tema principal durante os cinco dias da festa. Correrá esta o risco de se transformar numa feira de vaidades? O futuro a Deus pertence, diria Dona Margarida. Quanto a mim, nos próximos dias vou seguir o poeta à letra: Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!

Imagem da manifestação promovida pelos habitantes da uma aldeia local encravada no condomínio privado das Laranjeiras, onde os condóminos chegam de avião particular e a entrada é guardada de metralhadora. Chico Buarque foi o único autor a referir-se ao assunto.


10/07/09

Só para vos fazer inveja: Dona Laura e o pudim voador

O nome dessa casa aí em cima é Pousada da Alcobaça e fica nos arredores de Petrópolis, cidade serrana (e imperial) a cerca de 85 quilómetros do Rio. A Pousada é dirigida por Laura Góes, uma senhora sábia - sublinho, sábia - prestes a festejar os seus 79 anos.
No dia em que cheguei ao Rio de Janeiro, Dona Laura, como toda a gente aqui a conhece, fazia o lançamento do seu livro chamado A cozinha da Alcobaça - receitas e histórias (Editora Terceiro Nome).
Voltarei mais tarde a Dona Laura. Por agora, transcrevo uma história. Como aperitivo.

"Quando me casei, aos 21 anos, era perfeitamente ignorante em matéria de cozinha. Fui morar em Houghton, uma cidadezinha mínina, no norte de Michigan, à beira do Lago Superior, nos Estados Unidos.
(...)
Durante muito tempo só usei receitas americanas, porque me sentia mais segura com a exatidão delas, o que não impedia, entretanto, que fizesse muita comida ruim, como galinha meio crua e macarrão cozido demais, até adquirir alguma prática.
(...)
Uma vez, ainda em Houghton, fiz uma coisa extraordinária: um pudim de claras! Fiz tudo como mandava o figurino e coloquei o pudim no forno em banho-maria. Quando devia estar pronto fui olhar. O pudim tinha sumido. Não sabia o que podia ter causado o fenómeno, mas descobri: o pudim tinha levantado voo - subiu e ficou grudado no teto do forno. Durante um tempão a casa ficou cheirando a açúcar queimado toda vez que se ligava o forno. Dessa vez a exatidão não funcionou."

03/07/09

Interrompo os altíssimos debates literários de Paraty para ir beber seis caipirinhas pelo alma do Pinho!

É só. Depois falarei do Dawkins e da Dona Margarida, senhora que me disse hoje de manhã quando se despedia de mim:
¨Num momento em que fala tanto de literatura em Paraty, eu também quero falar-lhe do meu autor. Do autor de todos os autores... Deus¨.
E ofereceu-me dois exemplares da ¨Sentinela¨ e um beijo.
O mundo é complexo para caramba...

01/07/09

A caminho de Paraty, depois dou notícias (entretanto, deixo-vos com impressões antigas...)

Há palavras de tal forma banalizadas pelo uso que, quando nelas tropeçamos, o fundo de censor que habita cada um de nós - se menos reprimido - não resistiria a puxar do revólver.
Paraíso, por exemplo. Sobretudo se se trata de um texto sobre viagens, logo ali apetece amaldiçoar o hiperbólico escriba, condenando-o, por exemplo, a três meses de férias na Quarteira. Para além de - quase sempre - se tratar de uma descarada patranha, deixa-nos sem distintivo face ao que poderá ser um resquício do Eden primordial. Digo resquício, visto que - é do Livro - do Paraíso não se sabe a geografia, na única certeza de que para lá não há passagens low cost. 
O caso é este: Paraty poderia caber nessa categoria. Só que, dado o desgaste linguístico, ninguém iria acreditar. Abandonem-se, pois, os predicados e exponham-se os factos. E o facto é que chegámos lá de noite.
Com sonos acumulados, tanto eu como o fotógrafo concordámos em dormir cedo. Uma batida tremenda despertava-me passadas escassas horas, como se a minha cama (comigo lá dentro, e aí residia o problema) tivesse sido catapultada para um sambódromo adventício.
Não era Carnaval. Obrigada a regressar a uma dimensão do real onde todos, menos eu, pareciam divertir-se altamente ao ritmo de intermináveis cirandas – na origem, bailes de roça assistidos por viola, violão, cavaquinho e pandeiro de adufo, as mulheres rodando as saias e os homens sapateando tamancos de madeira enquanto o mestre virandeiro marca a cadência improvisando versos: imagine-se o estardalhaço! –, e quando já me dispunha, ensonada mas pragmática, a render-me ao «se não podes derrotá-los junta-te a eles», eis que a toada se torna mais tranquila, invocando sucessos melosos lá da década de 40... Eram umas três da manhã, eu ressuscitara ao som de um ô si balança/ ô si balança/ no si balançá/ ô si balança/ ô si balança/ prà lá e prà cá repetido à exaustão, por isso que se me seja dispensado o rigor discográfico.
No dia seguinte deslindava-se o motivo da festança: a cidade comemorava 335 anos de emancipação política e o que eu estivera a ouvir fora a Grande Ciranda de Paraty, e depois a Orquestra New York Society Band, a actuarem no Mercado do Produtor Rural, por acaso MESMO atrás do meu hotel. O fotógrafo, que não dera por nada, alojado noutra estalagem fora do centro histórico, nem por isso foi poupado ao ô si balança/ ô si balança/ no si balançá/ ô si balança/ ô si balança/ prà lá e prà cá que trauteei toda a manhã. Aguentou estoicamente até à hora do almoço. À sobremesa, depois de uma irrepreensível galinha de cabidela (a tradução local é "ao molho pardo"), arremeteu-me com um «Não se canta à mesa!» fulminante. E ameaçou amordaçar-me.
A primeira referência conhecida ao sítio de Paraty recua a 1554, data em que Hans Staden foi feito prisioneiro pelos índios desta região localizada no extremo Sul do Estado do Rio de Janeiro (a 248 quilómetros do Rio e 330 de São Paulo), aventura que deixou registada em Diário. Os seus habitantes originais eram os índios Guaianá, que se ficavam pela serra no Verão e desciam ao litoral durante o Inverno, ao encontro de clima mais ameno. A desova dos cardumes de tainhas e piratis (não confundir com paraty) durante o tempo fresco, era outra das razões que levava os Guaianá a acercarem-se do mar, que por aqui forma uma baía protegida.
Em língua tupi «paraty» significa golfo e, conhecido o costume dos indígenas de recorrerem aos acidentes geográficos para baptizar os lugares, fica esclarecida a toponímia da cidade. Desses ocupantes primitivos restam as aldeias de Tekoa Araponga, na Vila do Patrimônio, que reúne 40 Guarani, e a Aldeia de Tekon Tatim, onde vivem cerca de 100, ambas em Reservas Florestais Federais. 
Foi esta última que tentámos visitar. A caminho de Paraty Mirim – lugarejo encantador a 17 quilómetros de Paraty, cujo porto serviu durante muito tempo para o desembarque ilegal de escravos, até entrar em decadência a partir do século XIX –, à beira da estrada de terra, não havia a certeza de lá podermos entrar. Dependia do pajé.
Esclareço. Aqui, os índios não vivem no meio das outras pessoas. A má consciência dos políticos levou-os a «ceder-lhes» terras onde, apesar das eventuais boas intenções, residem condenados a um ostracismo proteccionista. Assim, a gente vai na estrada, vê uma placa a dizer Propriedade Privada - Reserva Federal, umas pessoas sentadas junto a umas casas mesmo ali, e se quiser perguntar que dia é hoje?, por exemplo, tem de mandar um fax para Brasília pedindo autorização à FUNAI (Fundação Nacional do Índio). Isso, ou esperar que o pajé, que é o índio responsável pela aldeia, esteja bem-disposto e nos deixe aproximar.
Parado o jipe, Armando, guia credenciado conhecido por Vagão, e Miriam Cutz (a nossa incansável cicerone) avançam para tentar falar com o cacique (o termo não tem aqui sentido pejorativo). É então que uma criança se aproxima da viatura junto da qual eu e Henrique, o fotógrafo, aguardamos o resultado das negociações.

A biologia explicará, ou não, o meu instinto maternal exacerbado. Na circunstância, deu-me para pegar na criança ao colo e afastar-me do jipe, com a intenção de a entregar a alguém e desviá-la da estrada. Ao fim de meia dúzia de passos, sai-me ao caminho uma mulher mal-encarada – e mal oxigenada. Olha-me como se reconhecesse em mim um membro de alguma organização dedicada ao tráfego de menores e rosna: «Não podem tirar fotografias sem autorização». Eu não tenho máquina, carrego apenas um pequenino índio. Controlo um desejo primitivo de a esbofetear (que a biologia também explicará) e respondo que só pretendo proteger o bebé, que uma irmã (presumo) acaba de levar de volta. Entretanto, as negociações prosseguem. Vagão e Miriam não conseguem falar com o pajé. Barrados pelos dois responsáveis da FUNAI (além da mulher há um outro elemento, menos desagradável mas igualmente inflexível), acabamos todos por nos vir embora. «Se quiserem entrar (mas onde verá o homem a porta?!) mandem um fax para Brasília», relembra o sujeito da Fundação. 

Já no carro, Vagão, até agora calado, sugere, expedito: «Eles ao final do dia estão sempre em Paraty a beber cerveja e a pedir esmola, tiram as fotos que quiserem». Ninguém responde e, em silêncio, dá-se por encerrado o episódio que lamentavelmente se convertera em «ir ver os índios». 
Coisas menos desagradáveis. Aparecida, por exemplo. Se a vida fosse um pouco mais cor-de-rosa, quem sabe ela partilhasse as passerelles com a própria Gisele Bundchen! A jovem surgiu-nos como uma aparição na cozinha do Sr. Arlindo Sacramento, velho de incríveis olhos azuis que tem como máxima de vida, brincar e caçoar não pega nada.
Moradores de uma pequena casa na serra, a caminho da Cachoeira da Pedra Branca, nos arredores de Paraty, recebem-nos com um hospitaleiro Sejam bem chegados!, oferecem-nos água e bananas doces e indicam-nos o caminho da queda de água onde não somos os únicos a mergulhar.
Tínhamos partido de manhã para conhecer a Estrada da Serra, nome pelo qual é conhecida a Estrada Real (ou Caminho do Ouro), troço de engenharia viária que explica por que razão Paraty teve importância fundamental na história brasileira, chegando a ser o segundo maior porto do país (e um segredo de Estado durante todo o século XVIII). 
Dispomo-nos a repisar a via por onde os portugueses transportavam (obrigatoriamente, já que este era o único itinerário permitido) o ouro vindo do interior, de Minas Gerais, até ao porto de Paraty, e daí para Portugal via Rio de Janeiro. Calcetado por pedras enormes (a que chamam estilo pé-de-moleque), que o tempo e os elementos não conseguiram vencer, visitamos um trecho preservado de oito quilómetros.
Tudo parece ter tido início com a expedição de Martim Correa de Sá, em 1597, à frente de 700 europeus e 2 000 índios, visando refazer um antigo trilho dos Guaianás, que, por sua vez, teriam usado caminhos abertos pelos animais. Essa autêntica «via romana» (chegou a alcançar 1 200 quilómetros), viveu em permanente engarrafamento durante a febre do ouro que começou em 1700, juntando homens e animais de carga, escravos e salteadores, tropas e aventureiros, numa viagem que durava mais de 45 dias. No final do século XVIII, com a abertura do Caminho Novo, que chegava ao Rio via Petrópolis (onde se instala a Corte), mais o enfraquecimento do negócio do ouro, o Caminho de Paraty entra em declínio.
O silêncio é de chumbo. É difícil imaginar a azáfama que por aqui já se viveu, os gritos, os assaltos, as mortes, a fúria e o sangue dos homens arrebatados pelo metal precioso. As árvores têm um porte extraordinário, há plantas que se enroscam mal lhes tocamos, a água requebra-se em riachos cristalinos, um musgo vermelho-vivo garante a pureza absoluta do ar. A meio de uma subida mais íngreme, uma placa assinala «Canela Fedorenta». Ultrapassada a árvore, o insólito letreiro ganha todo o sentido: faz-se sentir um cheiro intenso a estrume, de que o nosso guia se diverte a testar o efeito. Uma vista belíssima sobre a baia de Paraty espera-nos no alto. Nesse dia almoçamos na Fazenda Murycana, que recua ao século XVII, eleita de D. Pedro I que nela pernoitou várias vezes acompanhado da amante, a Marquesa de Santos. Uma visita ao antiquíssimo engenho onde ainda hoje é produzida de forma artesanal a aguardente, envelhecida depois em pipas de carvalho e cerejeira, encerra o repasto. 
Este é um dos seis engenhos que restam em Paraty, que já contou com mais de 100. Porque ao ciclo do ouro seguiu-se o da aguardente (depois, ainda, o do café), permanecendo esta a mais afamada do Brasil. Fazem os locais questão de precisar que na região «nunca se produziu cachaça mas pinga – que vem a ser aquela aguardente fabricada exclusivamente a partir da garapa, do caldo de cana fermentado e destilado, depois da fervura e evaporação, que pinga na bica do alambique». 
Explicação dada, estamos agora a corroborá-la no Refúgio, onde se bebe a melhor caipirinha local. Dirigido por Zé Paulo, um conversador nato, o restaurante ocupa local privilegiado frente ao porto, em terreiro largo. O lugar certo para se estar ao final da tarde. «O meu avô era de Beirute, e com esta minha cara de rato árabe do deserto confundem-me com o Bin Laden. O Amyr Klink, por causa do nome, pensam que é parente do Sadam», graceja Zé Paulo. 
Precisamente hoje, durante um passeio pelo mar, tinhamos avistado a ilha onde mora Klink, apenas uma entre as 65 que povoam a costa.
As serras, envolvas em névoa, vão-se aclarando à medida que a escuna avança, multiplicando-se ad infinito, como se deslizassemos num cenário pintado por Wang Fo. O recorte doce da paisagem, as formas arredondadas, as águas calmas, tudo isso explicará muito da leveza dos brasileiros, expostos a elementos que longe de se oporem aos homens antes parecem acolhê-los. Apesar do gigantismo dos morros que avistamos, é a mansidão que predomina sobre o medo que podemos imaginar ter assaltado os primeiros europeus aqui chegados.
Aparecida acompanha-nos e mergulha enquanto Henrique lhe testa a fotogenia. Um dos membros da tripulação regressa à superfície com estrelas-do-mar, explicando-nos que não se podem virar ao contrário porque morreriam. Uma mãe procura o filho à beira da histeria: «Meu filho afundou!» São apenas paulistas viciados no stress da cidade grande. Na ilha do Mantimento, do presidente da Fiat brasileira, junto à qual estamos ancorados, descobrem-se micos-leão dourados, uma espécie de macaco raríssima e em vias de extinção. Na ilha da Sapeca, o prazer do ócio degusta-se num tasco de madeira, enquanto um gato de olhos azuis disputa os restos do almoço a uma cadela chamada Menina. 
A poucos metros, num outro ilhéu, adivinha-se uma construção de gosto duvidoso, misto de Taj Mahal e pagode chinês. Um dos tripulantes do barco explica-me que foi uma oferta a Collor de Melo, que teve um sonho de marajá. A casa terá envolvido corrupção, o nome de António Carlos, ex-governador da Bahia (petit nom, Toninho Malvadeza), a empresa de construção viária OAS (vulgarmente conhecida por «Obras Arranjadas pelo Sogro») e uma doação a um funcionário, entretanto falecido, cuja viúva decidiu não cumprir o «contrato». Ficou com a casa para ela. Um provérbio local garante: «Brasileiro estraga de dia, Brasil recupera de noite». Por enquanto, o sonho de marajá continua de pé. 
Exactamente por motivos inversos é que Paraty foi declarada Monumento Histórico Nacional em 1966, segundo a UNESCO «o conjunto arquitectónico mais harmonioso do século XVIII no Brasil». O centro histórico, de planta em leque e cobrindo grande parte da cidade, é habitado e vivido pelos locais (não se tratando, portanto, de postal ilustrado para turistas). 
Explode numa panóplia de cores formidável, com as casas listadas por azuis, bordeaux, verdes e amarelos, janelas protegidas por um delicado entrançado de madeira (muxaribe), símbolos maçónicos nas fachadas e nas esquinas, «calçamento pé-de-moleque» nas ruas cuja leve depressão central permite que as águas entrem e saiam de Paraty banhando-a nas marés de lua cheia, pequenas lojas, bons restaurantes de cozinha caiçara (um misto da culinária trazida pelos europeus e paladares índios), vegetação exuberante tombando do interior das casas, como é o caso da Rua do Fogo, assim conhecida por ter sido ponto de encontro de marinheiros e mulheres de «vida fácil». 
E se foi o Caminho do Ouro que trouxe fama a Paraty, foi também, paradoxalmente, o seu declínio que a preservou. Quando, em 1885, é inaugurado o caminho de ferro entre São Paulo e o porto do Rio de Janeiro, Paraty apenas vê confirmada a sua queda.
Até há pouco tempo chegava-se aqui como no passado: de barco, vindo de Angra dos Reis, ou, a partir de 1950, por terra, via Cunha, por uma estrada que apenas era transitável quando não chovia, em parte decalcada sobre o velho caminho do ouro e do café. Fora já por esta que chegara, em 1929, o primeiro automóvel, incapaz, contudo, de fazer o percurso de volta. Um ano depois, a estrada seria destruída por tanques militares que se dirigiam a São Paulo durante a Revolução dos Trinta, só reabrindo ao fim de duas décadas.
«É sempre pelos caminhos que Paraty se salva e se perde», cita Diuner Mello, historiador local autodidacta, conhecedor dos meandros da cidade como poucos. E salvar-se-á novamente, já na década de 70, com a abertura da Rio/Santos, que a subtrai a quase um século de isolamento.
A poucos quilómetros, as praias da Trindade, em tempos famoso destino hippy, também só há pouco têm acesso por estrada alcatroada. Alternativa banhista às ilhas, trata-se de uma vila de pescadores sujeita a forte pressão imobiliária nos anos 70, quando foi palco que uma rocambolesca ocupação por parte de uma empresa multinacional, que meteu jagunços e tiroteio. O conflito foi parar à justiça e a Associação dos Moradores Nativos e Originários da Trindade conseguiu preservar a vila, encravada hoje no Condomínio de Laranjeiras, um casario de luxo privado guardado a metrelhadora e onde os moradores só usam helicóptero. 

A nossa viagem está a chegar ao fim. Tomamos um copo de despedida no Refúgio e à terceira caipirinha uma enorme luz desaparece no firmamento sem deixar rasto.
Um parênteses. Para além de tudo o resto, que é imenso, Paraty é também conhecida pelo seu «clima peculiar». Abreviando: OVNIS, pessoas que se passeiam compulsivamente de madrugada pelas ruas curvas do centro, «cavalos de Diana que pastam nas praças a dor alheia» (e é verdade que os animais andam soltos à noite), passado maçónico, esquisites templárias, enfim, a habitual panóplia new age... Naquele momento, a beleza do lugar, o céu tão estranhamento aceso e, concedo, as caipirinhas, terão permitido que me enredasse nessas coisas improváveis.
O fenómeno gera controvérsia à mesa. Miriam reconhece não saber do que se trata, mas a verdade é que lhe pareceu grande de mais para estrela cadente. Henrique, positivo, recusa mistérios. Eu, a única que estava de costas para o «objecto», não sei o que dizer. Cito Zé Paulo, o rato do deserto: «Não existem problemas. Existem enigmas», uma frase roubada já nem ele se lembrava onde.
E é quando proponho a última caipirinha. Aquela. A tal. A one for the road. Juro.