31/10/08

Eu sei que uma senhora não fala de dinheiro, mas por uma vez...

Veio o digníssimo presidente da Associação Nacional das Pequenas e Médias Empresas, Augusto Morais de sua graça, pronunciar-se sobre a subida anunciada do salário mínimo em 24 euros mensais (esclareço: é de 426 euros, será de 450). Considerando a medida incomportável para os sócios da ANPMES, o augusto-cassandra-presidente profetiza que o aumento do salário minímo terá como resultado... o aumento do número de beneficiários do fundo de desemprego. E porquê? Porque Augusto Morais, himself, irá dar instruções precisas aos seus correligionários para que, no entretanto, não renovem os contratos de trabalho a termo.
Face a tão expedita solução, 3 palavrinhas apenas (e sim, eu sei que uma senhora não fala de dinheiro...):
1. Quanto será que aufere mensalmente o dito Senhor Augusto?
2. Como é que, despedindo os trabalhadores, os sócios da ANPMES vão conseguir manter as empresas? (Passam os próprios a trabalhadores? Mas nesse caso quem lhes paga o novo salário mínimo se, enquanto sócios da ANPMES, eles são contra o novo salário mínimo?)
3. Um gajo que não tem 24 euros no bolso para aumentar um empregado não deveria desistir da carreira de empresário e tentar antes o fundo de desemprego?

28/10/08

José Cardoso Pires (2-10-1925/26-10-1998)

«(...) O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo:
Visto da janela onde me encontro, é um terreiro nu, todo valas e pó. Grande de mais para a aldeia – é facto, grande de mais. E inútil, dir-se-á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra-se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica repele, servindo-se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja. Leva-a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece-o, e ao meio-dia recolhe-se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é dela. À tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz enfraquece. Tão escura, observe-se, tão carregada de hora para hora, que parece uma mensagem antecipada da noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só, deixando-o entregue aos vermes que o minam. (...)»
José Cardoso Pires, O Delfim, 1968

27/10/08

Quem pode manda e quem manda manda investigar

Se eu bem percebi a história foi mais ou menos assim.
Paulo Macedo era, em 2005, director-geral dos impostos. Estava ele todo feliz a ser director-geral dos impostos e a ganhar 23 mil euros brutos por mês quando apareceu um empata a dizer que ele devia ao fisco. O Macedo, e com razão, ficou todo chateado e foi fazer queixa à PJ: que havia fuga de informação, que aquilo não podia ser, que era o que mais faltava, blá, blá, blá.
Os senhores da PJ foram falar com o Teixeira dos Santos, que é quem mandava (e manda) nas Finanças, e ele também concordou que aquilo não podia ser, que era o que mais faltava, blá, blá, blá. Mandou investigar. Os da PJ puseram-se a investigar. Começaram por investigar os e-mails de 370 funcionários da direcção-geral dos impostos, mas, muito parvos, só liam a parte que aparece no «assunto». Claro está que pelo «assunto» não chegaram a lado nenhum, até porque o tal empata só se fosse um imbecil é que escarrapacharia no «assunto» que queria lixar o Macedo.
O inquérito ia ficar na gaveta mas o Macedo, que é mais esperto a dormir do que eles todos juntos acordados, insistiu num Plano B: que se lesse o «conteúdo» dos e-mails! Nova investigação aprovada e toca a ler até que os olhos lhes doam! Chegados aos 30 mil – não é que lhes doíam mesmo? – foram para casa descansar a vista.
Conclusão: o inquérito seria inconclusivo – o empata deve ter mandado aquilo de uma NetPoint qualquer – e o Macedo regressou entretanto ao BCP onde se supõe que esteja todo feliz a ser administrador.

24/10/08

Com a crise, que será feito dos investidores do Second Life e dos linden dólares?

Cá para mim os avatares confiaram demasiado no imaterialismo do bispo de Berkeley e a mente cósmica caiu-lhes em cima. Mas quem tiver notícias, chute.

23/10/08

Não lhe deram o Nobel, mas ao menos deram-lhe o Sakharov

Hu Jia, o activista chinês dos direitos humanos que o governo de Wen Jiabao condenou, no passado mês de Abril, a três anos e meio de prisão, recebeu o prémio Sakharov, prémio criado pelo Parlamento Europeu em 1985 para homenagear personalidades ou organizações que se destaquem no combate pela liberdade. A China, que tinha exercido imensas pressões para que o Nobel da Paz não fosse entregue a Hu Jia, já fez saber que considera esta atribuição uma ingerência nos seus assuntos internos. Será. Mas vai ter que ingeri-la.

O mundo tal como ainda não o conhecemos: terá Sarkozy acordado tarde?

«Eu não queria ver os cidadãos europeus acordarem daqui a uns meses e descobrirem que uma companhia europeia pertence maioritariamente a investidores estrangeiros que compraram acções ao preço da chuva», afirmou o presidente francês, presidente em exercício do Conselho Europeu.

21/10/08

Como um verdadeiro Grande Líder, o primeiro-ministro não dá descanso ao seu povo*

E eu posso confirmar a verdade deste título já que, noutro dia, acabada de entrar num táxi e ainda a bocejar, tive de levar com o Sócrates chapado na TV-Táxi (canal de cuja existência não fazia a menor ideia), a inaugurar qualquer coisa logo de manhãzinha pelo menos durante a subida de S. Bento até ao Rato. E havia trânsito.
*Título roubado aqui.

É só seguir a música


Bebo Valdez e El Cigala - Veinte años

19/10/08

A empregada de João Pereira Coutinho, a luta de classes, Mailer e Steinbeck

Naquele tempo lia-se muito Karl Marx. Não vou agora pôr-me à armar e dizer que li o Das Kapital inteiro, muito menos no original. Li-o na versão que havia lá em casa, suponho que pela mesma altura em que li Praias da Barbaria e A um Deus Desconhecido. Teria sido uma heresia confessá-lo, mas já então Mailer e Steinbeck faziam mais o meu género.
Do alemão apátrida retive umas noções vagas sobre a «lei da baixa tendencial da taxa de lucro» ― conceito que, traduzindo-se em fórmula matemática, arrumava com qualquer reaça de Letras ― e sobre as «contradições internas do capitalismo» ― ainda hoje a fazerem sentido para mim, já que um sistema que vive de vender coisas não pode, ao mesmo tempo, empobrecer demasiado a malta porque no fim alguém terá de ir às compras.
A cabeça ocupada com outro homem, há muito que não pensava em Karl. Voltei a pensar nele derivado à crise. Correm rumores que há quem o ande a reler. Não sou eu, mas antes isso que o berreiro de redundâncias que por aí se ouvem, pensei.
Um parênteses. Sinal do vazio de ideias (e, mais grave do que isso, do combate ao pensamento como coisa absolutely old fashion) bem podia ser Sarkozy, o «Queres-Porrada-Queres-Porrada», bramindo que os «culpados serão castigados!» e o capitalismo «reconfigurado». E logo agora que os chineses se estavam a habituar...
Ganância! Ganância! Ricos a quererem ser cada vez mais ricos! O tema já foi tratado em telenovela homónima pela SIC.
Abatida pelo clima emocional (além de abatida, e de que maneira, pela crise), eis que ontem, ao ler João Pereira Coutinho, me apercebo que nem todos estão desatentos. Há, como Marx, quem teime em compreender.
Cito Coutinho: «A minha empregada comprou casa e carro porque pediu empréstimo ao banco. Como ela própria me informou, todo o salário do marido e parte do salário dela serve para amortizar a dívida. O que sobra vai para a alimentação, roupas e outras despesas correntes. Infelizmente, e nos últimos tempos, o pouco que sobrava foi-se evaporando com a subida dos juros. As prestações sobem e ela não sabe o que fazer à vida. Eu entendo este aperto, no fundo, o aperto de qualquer português «trabalhador» [as aspas são do próprio]. Mas, em exercício de impensável moralismo, ainda perguntei: "E porque motivo comprou casa e carro quando provavelmente não os podia pagar?"».
A conclusão, se não a resposta, chega no último parágrafo: «(...) talvez tenha chegado a hora das famílias começarem a usar a cabeça porque a responsabilidade também lhes pertence. A ideia anti-igualitária que nem toda a gente pode ter casas, carros, férias ou jactos talvez não seja simpática. Mas a realidade nem sempre é simpática».
O velho Marx não teria dito melhor. A ilusão dos pobres de que poderiam ser ricos como os ricos não passa disso mesmo ― de uma ilusão.
Quem a mandou comprar carro? Casa? Tirar férias? Quem é que a corrompeu com a ideia utópica e pré-revolucionária que poderia ascender, natural e socialmente, à classe média? E é aí que Coutinho encontra Marx. Ambos concordando que pero todavía hay classes.
Subjugada pela clareza do raciocínio (quase tão transparente como fora para mim, em tempos, a fórmula mágica da «lei da baixa tendencial da taxa de lucro» que entretanto esqueci), eis que a realidade me entra porta dentro sem pedir licença [e deve ser por isso que Platão, na sua busca desesperada por ordem, ainda hoje me comove tanto: é que a minha realidade sempre tendeu a ser turva e dada ao caos (a ficção é que me lixa, eu sei)].
Então. O caso da empregada de João Pereira Coutinho. No meu caso, D. Alice tem carro e duas casas (uma delas é de campo), eu ando a pé e pago renda. Não me queixo, mas como encaixar na Teoria este verdadeiro escândalo empírico? Nem Marx nem Coutinho o consideram. E rendo-me à evidência: vá-se lá perceber o mundo fora da literatura!

17/10/08

Quando se lêem livros assim, fica-se com saudades de livros assim

I
«O tio de Francis Marion Tarwater estava morto há meio dia apenas quando o rapaz ficou demasiado bêbado para acabar de abrir a sepultura e um negro chamado Buford Munson, que ali viera pedir para lhe encherem um jarro, teve de terminar o serviço e arrastar o cadáver para longe da mesa posta para o pequeno-almoço, à qual se encontrava ainda sentado, de modo a sepultá-lo condignamente e de acordo com os preceitos cristãos, com o sinal do Salvador à cabeceira e terra em cima quanta bastasse para desencorajar os cães de desenterrarem o defunto. Buford aparecera cerca do meio-dia e quando abalou pelo sol-pôr, o rapaz, Tarwater, ainda não regressara do alambique».
Início de O Céu É dos Violentos, Flannery O'Connor, tradução de Luís Coimbra, 2008, Cavalo de Ferro [no original, The violent bear it away]

16/10/08

Eu não saberia expor melhor o reaccionarismo obsceno que se esconde por detrás de certos discursos prá-frentex sobre a escola

«[...] continuarei a afirmar que o nivelamento por baixo, que oficialmente se instituiu no ensino (lembremo-nos das palavras recentes do Dr. Jorge Pedreira a propósito do ensino em Portugal ser demasiado exigente), faz com que os alunos deixem de acreditar nas suas próprias capacidades, perdendo a vontade e a perseverança, que acompanham habitualmente o desenvolvimento de todo o estudo. É uma forma deselegante, no mínimo, mas também muito elitista, de dizer antecipadamente aos alunos, sobretudo aos da Escola Pública, que são uns incapazes.
«[...]Esta euforia do novo pelo novo, que actualmente impera e se manifesta em todos os campos, lembremo-nos do inovador «Allgarve», é um discurso ditado por quem está mais interessado em que se cumpram ordens, neste caso de Bruxelas, e em formatar o ser humano, neste caso, alunos e professores. (...) Este discurso oficial decide, mostrando a sua arrogância (e também mediocridade) intelectual, que os interesses dos alunos se centram no presente, solto de influências, e no excesso de imagens que humanamente é impossível reter e que se dispersam sem qualquer significado. No fundo, talvez o objectivo primeiro (e estou cada vez mais convicta disso) seja treinar os alunos a não pensar.
«[...] chamaram-me elitista quando dei a conhecer, de forma crítica, a presença do «Big Brother», de «Testonovelas» e outras do mesmo género, em manuais, e quando defendi a importância da arte, nela incluindo naturalmente a literatura, na sala de aula. Mas elitistas são as pessoas que estão por detrás destes programas e das suas metodologias. Com efeito, se não for a Escola a preencher o vazio cultural, que resulta de uma situação familiar fragilizada, quem o fará? Pelo contrário, os que têm a possibilidade de conviver, em suas casas, com um discurso de cultura, não terão qualquer problema se a Escola falhar nessa sua missão. A esta desigualdade de oportunidades, que a Escola promove, chama-se cavar o fosso entre ricos e pobres, para mais tarde, como diria Vieira, no seu Sermão de Santo António aos peixes, os maiores comerem os mais pequenos. Expressiva é também a frase de uma das canções de Schumann: Aqueles que são ignorantes são fáceis de conduzir. Na verdade, quem não pensa, acaba por baixar os olhos, caminhar em grupo, seguindo os passos de quem o conduz, esquecendo-se de si próprio. E é um crime fazer com que os alunos se esqueçam de si próprios, se anulem enquanto seres humanos, nunca reflictam sobre o que quer que seja. E depois admiramo-nos com o facto de os jovens não irem votar... »
[Excertos de uma entrevista da professora de liceu Maria do Carmo Vieira ao «Notícias Magazine» de 14 de Setembro 2008; mea culpa, descobri-lhe a referência apenas agora aqui]

15/10/08

Dedicado a todos os que desataram aos gritos contra a «cultura francesa», só porque alguém tinha dado o Nobel a um tipo que eles nunca tinham lido*


* E ponham isto por conta do conflito de gerações, da luta de classes ou da guerra dos sexos. Je m'en fous, digo, I don't give a shit. Eu cá tanto gosto de Le Clézio como de Roth, de Godard como de Billy Wilder (que por acaso nasceu austrohúngaro e hoje seria polaco). A mim, la moutarde me monte au nez só, e apenas, quando teimam em que o blue stilton is better then roquefort.

14/10/08

Grito do Ipiranga pré-adolescente (mesmo que esse seja um estádio inventado nos morangos com açucar ou similares)

Cena doméstica após novo ataque de Anopluras na escola.
Eu: Ema, não podes pôr já amanhã mais shampoo para os piolhos... Vai-te fazer mal ao cabelo...
Ema: Desculpa, mas eu estou mesmo farta disto. Além disso, sabes que mais? Eu já tenho idade para tratar dos meus próprios piolhos!

12/10/08

«O Arquipélago da Insónia», de António Lobo Antunes


De acordo com a famosa máxima do ensaísta inglês Walter Pater (1839-1894), «all art constantly aspires towards the condition of music, because, in its ideal, consummate moments, the end is not distinct from the means, the form from the matter, the subject from the expression (...)». Esta concepção da música como a «grande arte» parece ajustar-se cada vez mais à escrita de António Lobo Antunes. O seu último título, O Arquipélago da Insónia, indiferente ao pretexto ficcional ― ascensão e queda de uma família latifundiária alentejana (?)―, surge habitado por uma polifonia de espectros, soando como uma melodia riscada por frases e sons sincopados e crispados, agentes devoradores da própria partitura do texto que, ainda assim, sobrevive.
No princípio há uma casa: «De onde me virá a impressão que, na casa, apesar de igual, quase tudo lhe falta?». Depois vão saindo dela, em lenta procissão, as personagens (mortas ou vivas?, acabará por perguntar-se o leitor que não pode evitar Pedro Páramo, de Juan Rulfo): um avô («comandando o mundo»), criadas submissas («― Chega cá»), dois irmãos, um deles autista («repara no meu irmão que não responde a nada interessado na música», uma avó («a chávena da minha avó a tremelicar no pires»), um feitor («sob as nogueiras a lutar com os sapatos sem dar com as árvores sequer conforme lhe sucedeu pisar o padre que se sumia na terra»), um ajudante de feitor («Para alguma coisa há-de servir esse idiota»), um pai («e ninguém ao seu lado, você sozinho pai e todavia à procura, as mãos a segurarem o que julgava as mãos da minha mãe»), uma mãe («alguma vez a vi sem ser de costas para mim?»)... somando-se a estas outras tantas, fios frágeis de um emaranhado narrativo que, à maneira de um sonho, tanto escapa à temporalidade sequencial como às leis de causa e efeito. E, também por isto, trata-se de um livro do qual se gosta mais à segunda leitura.
Chegados aqui, teria de nos vir à cabeça O Som e a Fúria, de William Faulkner, escritor que António Lobo Antunes diz ler cada vez menos mas de cuja família literária não poderá fugir. Precisamente sobre a tragédia da família Compsons, escreveu ele: «(...) possui a qualidade de ser um romance que, tal como a grande poesia, se relê no maravilhamento da descoberta: a todo o passo damos com pormenores que nos haviam passado despercebidos, em cada página nos emocionamos». Mas se, como na extraordinária obra do Nobel americano, também em O Arquipélago da Insónia há uma família decadente e um «Idiota» a que se quer dar voz, torna-se arriscado ir mais longe nas comparações. Neste as vozes misturam-se (uma só, afinal?), o ritmo delirante é omnipresente, a alucinação é indistinta do real e vivos e mortos trocam de papéis, esfumando-se, uns e outros, em fotografias antigas sem futuro. As palavras atropelam-se, interrompem-se, rodopiando indiferentes às regras da identidade, da linearidade, indiferentes também à preguiça do leitor, esse leitor que já Machado de Assis interpelava ironicamente em Memórias Póstumas de Brás Cubas: « (...) tu amas a narrativa direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem». Neste caso, claro, o estilo chega expurgado de realismo, mero pretexto imagético para um exercício radical de linguagem: onírica, exacta, cruel (a morte, o sexo e o crime mancham O Arquipélago da Insónia), nunca descarnada, à imagem da música ― a mais racional e sensual das artes.
E também por mais este livro, mesmo se distinto da condição mágica de «Iniji», se poderá dizer da busca literária de António Lobo Antunes o mesmo que J.M.G. Le Clézio disse a propósito dessa espécie de poema assinado por Henri Michaux: «As linguagens pesadas tropeçam nas suas consoantes, nas sílabas, como um cego tropeça nos móveis de um quarto desconhecido. Já não pretendemos falar todas as línguas. As palavras encontram-se além, sempre além, e é preciso apanhá-las depressa. As vogais que soam, ressoam. Talvez seja preciso abandonar tudo
Fotografia de Enric Vives-Rubio

10/10/08

Leituras à borla

Lá pelo meio do Verão, O Bibliotecário de Babel perguntou-me o que é que eu andava a ler, só pelo plaisir des yeux. Já entrados no Outono, dei-lhe a resposta. Que foi esta.

«Para ir directa ao assunto, e sem délicatesse (a tal que lixou o Rimbaud). No fundo, a pergunta a que o José Mário Silva me pediu que respondesse é esta: o que é que lês quando não te pagam para ler? Ora bem. Atendendo aos baixíssimos valores de mercado da leitura crítica, diria que leio mais ou menos o mesmo do que quando me pagam para ler (salvo as raríssimas excepções em que, exceptio regulam probat, num impulso messiânico de salvação das letras, encho os pulmões de altruísmo e me proponho zurzir em coisas ilegíveis, o que também me acontece).
Na realidade, gostaria de poder responder, com Wilde, «I never read a book I must review, it prejudices you so». Não seria verdade, e «só a verdade é revolucionária», como terá um dia jurado a pés juntos Vladimir Ilitch Lenin, um autor que deixei de frequentar muito antes do João Carlos Espada se ter convertido ao charme (neoliberal) do countryside.
Deixando de me armar em engraçadinha e indo, agora sim, directa ao assunto, respondo que, pro bono, digo, à borla, as últimas coisas que li, ou reli (esse sim, o maior prazer que se retira da possibilidade de fugir ao ritmo frenético dos escaparates…) foram:
O que diz Molero, de Dinis Machado (Bertrand)
O Vento nos Salgueiros, de Kenneth Grahame (Tinta da China)
O Delfim, de José Cardoso Pires (Dom Quixote)
Bouvard et Pécuchet (Gustave Flaubert, Livre de Poche, mas pode ser descarregado gratuitamente aqui)
The Yiddish Policemen’s Union, de Michael Chabon (HarperCollins)
E agora ando-me a babar pel’ A Faca Não Corta o Fogo – Súmula & Inédita do Herberto Helder, pelo qual já passei os olhos. Confirmei o que sabia: ainda há grandes poetas, e ainda há grandes poetas que gostam de mulheres.»

09/10/08

Ainda Le Clézio: texto que eu tinha traduzido para a Phala do Hermínio e que não sabia por onde andava

O Miguel descobriu-o no site da Assírio & Alvim (obrigada!) e passou-me a informação. Aqui fica a versão em português do que no post anterior publiquei no original.
«Vou-vos dizer, vou-vos explicar tudo. Tinha, portanto, dez, doze anos e morava nessa velha casa que dava para o porto, um pouco napolitana, completamente a cair, com lençóis a secar a todas as janelas do pátio, gatos semi-selvagens que lutavam nos telhados e, claro, os bandos de pombos. Nesse tempo não sabia o que era um escritor, não fazia a menor ideia, nem suspeitava que tinha havido um escritor chamado Jean Lorrain que habitara a mesma casa, outrora. Recordo esta casa sobretudo na época do calor, no Verão e no começo da Primavera, porque deixávamos as janelas abertas e escutávamos o barulho dos gaivões e os arrulhos dos pombos. Mas havia especialmente um barulho que mexia comigo. Não posso verdadeiramente dizer porque é que me inquietava, mas ainda hoje quando penso nisso me arrepio e entro numa espécie de estado de melancolia e impaciência que precede o momento em que sei que terei de me sentar em qualquer lado, ali mesmo onde estou, agarrar num caderno e numa lapiseira e começar a escrever. Este barulho, eram as vozes dos jovens que chamavam uns pelos outros no pátio, que gritavam os seus nomes. Havia os rapazes que assobiavam, e os outros que metiam a cabeça à janela, e diziam: "Estás abonado?" E os de cima: "Onde é que vão?" Eles iam já não sei onde, à praia ou à feira, ou simplesmente conversar à esquina da rua, ou esperar as raparigas que saíam da escola Ségurance, isso já não tem nenhuma importância. Mas quando ouvia aqueles assobios, e os nomes que ecoavam no pátio, imaginava uma vida diferente da minha, imaginava as correrias pelo infinito das ruas, imaginava os banhos na água fria do mar, o sol, o cheiro dos cabelos das raparigas, a música dos dancings, a aventura, a noite. Nunca ouvi chamar o meu nome no pátio, nunca ouvi assobiar por mim. Eu vivia na mesma casa, mas era outro mundo. Aqui está, é por isto que eu escrevo.»
J.M.G. Le Clézio in Libération, Março de 1985 [retirado de A Phala 36; tradução de Ana Cristina Leonardo].

Estou muito contente com a Academia Sueca

O Nobel da Literatura não foi para o Roth, mas foi para um outro escritor que eu adoro. Ainda por cima, um homem lindo: Jean-Marie Gustave Le Clézio. Disse ele: «De deux choses l'une: on risque de se faire avaler par la littérature ou par soi-même. Si on se fait avaler par soi-même, on devient fou. Si on se fait avaler par la littérature, on devient écrivain.»
[o ano passado tinha deixado aqui na Pastelaria um texto seu, publicado num dossier antigo do Libération organizado sob o tema «Porque é que eles escrevem?» Volto a publicá-lo]

Je vais vous dire, je vais tout vous expliquer. Donc, j'avais dix-douze ans, j'habitais cette vieille maison sur le port, un peu napolitaine, complètement décrépie avec des draps que séchaient à toutes les fenêtres de la cour, les chats à demi-sauvages qui se battaient sur les terasses, et bien sûr les escadrilles de pigeons. En ce temps là je ne savais pas ce que c'était qu'un ecrivain, je n'en avais pas la moindre idée, je ne me doutais pas qu'il y avait eu un ecrivain nommé Jean Lorrain qui avait habité dans la même maison, autrefois. Je me souviens de cette maison surtout à la belle saison, en été et au commencement du printemps, parce qu'on laissait les fenêtres ouvertes et qu'on entendait le bruit des martinets et les roucoulements des pigeons. Mais il y avait un bruit spécialement qui me faisait quelque chose. Je ne peux pas vraiment dire pourquoi ça m'inquiétait, mais aujourd'hui encore quand j'y pense ça me fait frissonner et ça me met dans cet état de sorte de mélancolie et d'impatience qui précéde le moment où je sais que je vais devoir m'asseoir n'importe où, lá où je suis, prendre un cahier et un crayon à bille et commencer à écrire. Ce bruit, c'était les voix des jeunes gens qui s'appelaient dans la cour, qui criaient leurs noms. Il y avait des garçons qui venaient siffler, et d'autres mettaient la tête à la fenêtre, et ils disaient: «Tu cales?» Et ceux d'en haut: «Où vous allez?» Ils allaient je ne sais plus où, à la plage, ou à la foire, ou simplement au coin de la rue pour discuter, ou attendre les filles qui sortaient de l'école Ségurane, ça n'a plus aucune importance. Mais quand j'entendais ces sifflements, et les noms qui réssonnaient dans la cour, j'imaginais une autre vie que la mienne, j'imaginais les courses dans l'infinie des rues, j'imaginais les bains dans l'eau de mer froide, le soleil, l'odeur des cheveux des filles, la musique des dancings, l'aventure, la nuit. Jamais je n'ai entendu appeller mon nom dans la cour, jamais je n'ai entendu siffler pour moi. J'etait dans la même maison, mais c'etait un autre monde. Voilà, c'est pour cela que j'écris.

Eu queria taaaaaanto publicar esta imagem. E foi então que Pio XII me caiu do céu

Pio XII foi aquele Papa que antes da guerra se dava muito bem com os alemães, durante a guerra deu-se mal com os nazis e depois da guerra ajudou alguns a safarem-se. Agora vêm dizer que afinal foi um herói que merece ser beatificado (se não for beatificado não pode ser canonizado...) porque também teria ajudado os judeus durante aquele período em que os metiam no comboio, sabe-se lá para onde!, e depois grande parte deles desaparecia sabe-se lá como!
Que ele fosse discreto, embora não faça o meu género, vá que não vá. A parte do piorar é que eu, por mais que tente, não percebo. Mas deve ser porque, ao contrário das meninas da foto, Jesus nunca quis nada comigo.

08/10/08

O pensamento mágico de Manuel Pinho (não o inovem, não!)

13 Out. 2006: Manuel Pinho anuncia o fim da crise em Portugal e diz que a questão é a de saber «quanto é que a economia portuguesa vai crescer».
12 Set. 2007: Manuel Pinho desvaloriza as sucessivas revisões em baixa das previsões de crescimento económico da Zona Euro – feitas por Bruxelas, pela OCDE e pelo FMI – afirmando que a economia portuguesa «está no bom caminho para uma retoma sólida», não havendo «qualquer indicação de crise».
13 Set. 2008: Manuel Pinho considera a situação financeira nos Estados Unidos pior do que se estava à espera, sublinhando contudo que o mesmo não se passa em Portugal: «A situação financeira nos EUA é, infelizmente, pior do que se julgava, mas o mesmo não aplica à Europa e a Portugal»
8 Out. 2008: Infelizmente, sem querer saber dos disparates de Manuel Pinho, no segundo trimestre do ano a economia da União Europeia aproximou-se a passos largos de uma recessão técnica, depois do PIB ter caído 0,2 por cento devido à queda do investimento e do consumo privado.
Manuel António Gomes de Almeida de Pinho é Ministro da Economia e da Inovação desde 12-03-2005, responsável pelas brilhantes campanhas «Portugal Europe's West Coast» e «Allgarve», além de fã incondicional de Fátima Lopes: «Além de minha amiga, é a minha estilista favorita». Está tudo dito.

05/10/08

As vacas do presidente na era «Magalhães»


Este recente e premente fascínio pelos mais variados artefactos tecnológicos deixa-me entre o atónito, o riso e um cagaço do caraças porque, afinal, são estes tipos que estão no poder... e avançam, deliciados, uns atrás dos outros.
[Roubado daqui]

Herberto, o desejado


Engoli
água. Profundamente: - a água estancada no ar.
Uma estrela materna.
E estou aqui devorado pelo meu soluço,
leve da minha cara.
O copo feito estrela. A água com tanta força
no copo. Tenho as unhas negras.
Agarro nesse copo, bebo por essa estrela.
Sou inocente, vago, fremente, potente,
tumefacto.
A iluminação que a água parada faz em mim
das mãos à boca.
Entro nos sítios amplos.
- O poder de reluzir em mim um alimento
ignoto; a cara
se a roça a mão sombria, acima
da camisa inchada pelo sangue,
abaixo do cabelo enxuto à lua. Engoli
água. A mãe e a criança demoníaca
estavam sentados na pedra vermelha.
Engoli
água profunda.

Herberto Helder, A faca não corta o fogo, Assírio & Alvim, 2008
[roubado cerimoniosamente ao Miguel]

03/10/08

Dinis Machado (1930-2008): «Morrer é só não ser visto»

«[...]"Então a tua tia chalou?, perguntou um dia o Zuca", disse Austin "como é que ela faz?, tem ataques?, é maluca de ter de ficar atada?, de ter ataques com espuma na boca ou é só maluca de não ligar a nada?, o rapaz disse que era maluca de falar em comboios e em serradura, que era um bocado triste e não fazia mal a ninguém, fazia-lhe impressão porque ela já não o conhecia, estava paradinha no banco de lona, então o Bertinho Ranhoso dizia que os malucos com uma grande calma às vezes eram os piores, estão com uma grande calma e só pensam em meter facas no bucho das pessoas, o Peida Gadocha dizia que também tinha uma tia maluca, mas era só maluca de comprar vestidos, tinha mais de quatrocentos vestidos, comprava os vestidos e passava-lhes a mão, era maluca de passar a mão pelos vestidos, o Zuca dizia que quatrocentos vestidos era uma peta das antigas, isso ninguém tinha, o Peida Gadocha dizia que se não eram quatrocentos eram duzentos, isso não interessava, ela era chalada de mexer nos vestidos e de estar sempre a dizer está bem mas tenho de mudar de vestido, dizia os meus vestidinhos, os meus vestidinhos, depois ficava nervosa e ia comprar mais vestidos, o Mané Borbulhas dizia que tinha um tio e uma tia que ficaram malucos ao mesmo tempo, foi por causa de uma roca, ele tinha uma roca em cima da mesinha-de-cabeceira, ela começou a embirrar com a roca, que ele gostava mais da roca do que dela, ele disse que nem ligava à roca, estava ali porque tinha um feitio giro, tinha-a comprado na Feira da Ladra, mas para a chatear começou a cantar uma música que é a Traviata com versos a falar da roca, que lindo som que esta roca tem, tatati, tatatitati, ela para se vingar escondeu-lhe as calças e ele não podia sair de casa, cantava a Traviata à procura das calças, e ao fim de três dias chateou-se e saiu para a rua em cuecas e a tocar a roca, foi logo engavetado pelo polícia, a família toda foi à esquadra, a minha mãe levou-lhe umas calças do meu pai, mas ele não quis, que ficava em cuecas e a tocar a roca enquanto não lhe dessem as calças dele, a minha tia disse que lhe dava as calças se ele deitasse a roca fora, depois fizeram as pazes, o meu tio deu a roca à minha mãe, que ma deu a mim, era eu puto, eles depois deixaram de ficar malucos, a roca é que os chalava, o Zuca então dizia que também tinha um tio maluco, andava sempre de boca aberta e a pensar em nada, era despedido dos empregos porque o apanhavam de boca aberta e a pensar em nada, andava aí pelas ruas com livros debaixo do braço, vai lá a casa só no Natal, dizia ele, no último Natal ficou de boca aberta no meio do jantar, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora, deixou a perna de peru no prato, às vezes encontro-o e faz-me uma festa na cabeça, depois ficamos a olhar um para o outro, pergunta-me se eu já ando na escola, eu começo a falar e ele fica de repente de boca aberta, faz-me outra festa na cabeça e vai-se embora, ninguém consegue falar com ele, desliga quando lhe dá o aparte de ficar de boca aberta e de pensar em nada, o que ele gosta é de dar milho aos pombos nas praças, um dia o meu pai deu-lhe uma grande descompostura, disse-lhe o piorzinho, e depois no fim perguntou-lhe e agora o que é que vais fazer?, vou dar milho aos pombos, disse ele, fez-me uma festa na cabeça e foi-se embora de boca aberta, parece que os pombos é que o conhecem bem, poisam-lhe nos ombros e na cabeça, comem o milho da mão dele, um emprego de dar milho aos pombos é que era bom para ele, às vezes ele anda aqui no Largo do Navegante a dar milho aos pombos muito satisfeito da vida, anda de largo em largo, senta-se nos degraus das estátuas e põe-se a ler uns livros que ninguém percebe nada de um gajo chamado Pessoa, não é o António Pessoa, porque esse é o das balanças, é outro, se calhar é um livro sobre pombos, não sei, uma vez foi para a tropa e desertou, foram dar com ele numa praça a dar milho aos pombos, perguntaram-lhe porque é que ele tinha desertado e ele disse que marchar lhe fazia bolhas nos pés, acabou por ser preso e apanhou uma data de castigos, mas punha-se de boca aberta e não ligava a nada, depois mandaram-no para um manicómio e foi uma grande confusão, o médico perguntou ao meu pai se o meu tio tinha uma coisa que era intermitências não sei quê, o meu pai perguntou ao meu tio se ele tinha essas intermitências, o meu tio perguntou de que cor?, depois viram-lhe a língua e os olhos, ele nos intervalos perguntava ao enfermeiro não se importa de me dar o meu Pessanha?, que é um livro de outro gajo, o médico fazia-lhe perguntas para malucos, mas ele não ligava, só ligava ao Pessoa e ao Pessanha, queria era ficar de boca aberta a pensar em nada, devia sentir a falta dos pombos, acabaram por mandá-lo embora porque não havia lugares, os lugares eram precisos para os malucos assassinos e para os que espumam da boca, vai lá a casa no Natal, agora mesmo está ele, até aposto, a dar milho aos pombos num largo qualquer, a ler livros e de boca aberta, há malucos à brava mas não são perigosos, o meu pai diz que o Bigodes Piaçaba é maluco de ajudar os pobres, de querer pias limpas e banheiras e de acabar com os percevejos, de fazer umas grandes fitas com os senhorios e de querer endireitar o mundo, é um maluco que pensa nas coisas, em escolas e em hospitais, há malucos com outros apartes, de andarem a falar sozinhos ou de arriarem sempre do melhor, como o Joca Farpelas, ou de fazerem discursos que não interessam nada, e os malucos de contar o dinheiro, contam o dinheiro quinhentas vezes, depois falta-lhes um tostão e voltam a contar, se a porra do tostão não aparece até ficam doentes de cama, e os malucos de tocar pífaro só gostam de estar a tocar pífaro e o resto não interessa, todos os gajos têm um tio maluco, às vezes há gajos que têm uma data de malucos na família, o Padeirinha diz que a avó dele é maluca de dizer que lhe roubam coisas da caixa da costura, os dedais, as agulhas e os botões, um dia foi cá uma fita por causa de um botão de madrepérola, o avô do Padeirinha foi aos arames e disse que queria que o botão se fodesse, e bateu com a porta como de costume, o Padeirinha anda sempre a arranjar a fechadura, pede à avó que acabe com a mania que lhe roubam a caixa da costura e ao avô para não bater com a porta, mas eles não ligam, os malucos não ligam, é esse o aparte deles, até a minha mãe um dia acordou maluca, subiu-lhe à cabeça uma coisa que é a ureia, começou a dizer ao meu pai que andava um cágado nas dunas, o meu pai à rasca dizia um cágado nas dunas?, um cágado nas dunas?, levou-a para o hospital das pernas partidas, conhecia lá um enfermeiro, o meu pai começou a dizer às pessoas todas que a minha mãe dizia que andava um cágado nas dunas, uma enfermeira disse que ali era o hospital das pernas partidas, das doenças de pus e coisas assim, dizia que as doenças de cágados nas dunas era no manicómio, uma velhinha caquéctica e iglantónica perguntou qual cágado?, quais dunas?, um gajo que estava ao pé a gozar o prato disse que devia ser um cágado de patins nas dunas do Pólo Norte, o meu pai disse para o gajo ir gozar com os cornos do tio dele, o gajo a gozar perguntou quais cornos?, qual tio?, foi uma grande zaragata, o polícia que lá estava tirou o chinfalho e disse daqui a bocado dou-lhes o cágado, depois ficaram todos na bicha, eram mais de mil, a minha mãe começou a falar com a velhinha sobre o cágado, depois o enfermeiro conhecido do meu pai foi falar com o médico que o atendeu, ele disse que o cágado nas dunas era da ureia, nessa altura a minha mãe já não falava no cágado, dizia ao meu pai para ele não comer as prateleiras e as cortinas, que as cortinas e as prateleiras faziam falta, para ele comer a sopa de massa com grão que estava na panela, era só pôr ao lume e aquecê-la, o médico disse ao meu pai que tivesse calma, ele sabia que o meu pai não comia as prateleiras e as cortinas, depois deram uma injecção à minha mãe, ela ficou melhor, pelo menos não dizia peva, vieram de táxi e a minha mãe no meio do caminho perguntou ao chofer se ele tinha cortado as unhas dos pés e tomado o remédio para a tosse, o chofer perguntou ao meu pai se a minha mãe estava a gozar com ele, o meu pai disse que era da ureia, o chofer disse que até cortava as unhas dos pés todas as semanas, desejou as melhoras da minha mãe, chegaram a casa e a minha mãe começou a dizer que o meu pai a tinha enganado, que a tinha trazido para ali para lhe tirar as cuequinhas cor-de-rosa com pintinhas verdes, mas que ele se enganava, que ela não trazia as cuequinhas cor-de-rosa com pintinhas verdes, trazia umas cuecas pretas de renda, o meu pai telefonou para o enfermeiro e só dizia que puta de vida, depois deram outra injecção à minha mãe, ela ficou de cama dois dias e acordou boa, não se lembrava de nada, o meu pai é que até fica amarelo quando se fala naquilo".» [...]
Dinis Machado, O que diz Molero, 1977

The reader [um pesadelo para o fim-de-semana]


Time Enough at Last, The Twilight Zone, Nov. 1959

02/10/08

A estranha aritmética do partido socialista

Ponto prévio. Nunca me casei, não sou homossexual e os temas fracturantes não me dizem grande coisa. Posto isto. Há homossexuais que gostariam de dar o nó e não podem. Não podem, porque a instituição casamento é um exclusivo, em Portugal, dos heterossexuais. Ora bem. A Assembleia da República decidiu discutir o assunto, fazendo-o a partir de uma proposta dos Verdes e do Bloco de Esquerda que visa alargar a possibilidade do «sim» a pares do mesmo sexo.
Embora não pertencendo a nenhum dos partidos com assento na referida Assembleia, e sem sequer me dizer grande coisa a referida matéria, como já deixei claro no ponto prévio, gostaria de dizer 4 coisas.
1. Não tendo por hábito meter-me na vida dos outros, acho basicamente ― e concedo que de forma muito básica ― que se os homossexuais se querem casar é com eles. Não vindo daí qualquer mal ao mundo, talvez apenas mais divórcios, porque raio é que os heterossexuais têm, não só de opinar, como de decidir contrariamente à vontade de um clube de que não são membros?
2. Independentemente da declaração anterior, fez-me particular espécie a agitação socialista. Sobretudo a história da disciplina de voto. E, sobretudo, a aritmética do seu líder parlamentar.
3. Senão vejamos. Segundo notícia veiculada pela LUSA, e cito, «uma maioria dos deputados socialistas aprovou hoje a disciplina de voto contra os projectos sobre casamentos homossexuais». A contagem deu «47 votos favoráveis» e «cerca de duas dezenas contra».
Ainda segundo a LUSA, «o grupo parlamentar do PS é composto por 121 deputados». Regressando às contas temos que: 47+20 (quanto aos «cerca» podiam ir de 1 a 9, mas deixemo-los de lado...) dá 67. Faltam, portanto, outros tantos que não se pronunciaram, o que poderia, caso se tivessem pronunciado, fazer subir o número de apoiantes da proposta da direcção parlamentar, mas também diminuí-lo ou igualá-lo ao dos seus opositores.
Não se percebe, assim, a declaração heróica do líder parlamentar do PS, Alberto Martins: «a maioria, de forma muito expressiva, aprovou a disciplina de voto». É uma frase para a qual só encontro uma explicação: ele não sabe fazer contas.
4. Mais surpreendida fiquei ainda com a conclusão que o mesmo Alberto Martins retirou do facto de o PS vir permitir a Pedro Nuno Santos votar em consciência (ou seja, a favor do casamento entre homossexuais, apesar do não a que obriga a disciplina de voto). Afirmou ele que essa decisão foi uma «afirmação de pluralismo». Mas onde é que uma unidade (neste caso, Pedro Nuno Santos) pode ser ao mesmo tempo plural?
A não ser que Martins, apesar de péssimo em números, seja senhor de uma complexidade filosófica que me ultrapassa. O que é uma contradição nos termos, como saberá qualquer pessoa que tenha lido Platão.

Mijar nos livros

Andava eu à procura do romance Infinite Jest, de David Foster Wallace, o escritor que se enforcou em meados de Setembro passado aos 46 anos e que era tido como um dos principais nomes da literatura contemporânea dos EUA, quando deparei com uma crítica dele a John Updike. Eu nunca li as mil páginas de Infinite Jest. Li Updike e gosto muito.
Wallace não gostava e na tal crítica chama-lhe falocrata. Como apreciação literária pareceu-me despicienda. E só depois encontrei este outro texto, infinitamente sábio, escrito por Anne Roiphe:
What we really have here is the primitive competitiveness of males who want to urinate on the books placed on the front tables of Barnes & Noble in order to signify territorial ownership.
Ler o resto aqui.
[Marcel Duchamp Fountain, 1916-17]

01/10/08

Coisas que me reconciliam com o mundo

A GAIVOTA
CONTA A SUA VERSÃO
DA HISTÓRIA

Peixe?
Peixe?
Não me falem em peixe.
Detesto peixe.
Bacalhau?
Pff!
Salmão?
Pff!
Alforreca?
Pff!
Arenque, eglefim, hipoglosso?
Pff, pff, pff!
Barrinhas de peixe?
Pff!
Lombos de peixe? Cabeças de peixe, barrigas de peixe, olhos de peixe, dentes de peixe, cotovelos de peixe, joelhos de peixe, cabelos de peixe, óculos de peixe?
Pff, pff, pff, nunca, jamais!
Peixe?
Se pudesse apanhava todos os peixes e atirava-os ao mar.

Roddy Doyle, Os Brincalhões, com ilustrações de Brian Ajhar (edição portuguesa, 2001 Editorial Presença, pág. 82)