31/05/08

Livros que valem a pena

Pessoa só estava certo às vezes. Ou seja, isto nem sempre se aplica: «Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não o fazer!». Porque se certos livros são mesmo uma «maçada», nem por aproximação o adjectivo condiz com A Mesa Limão.
Não é preciso subscrever a teoria dos géneros de Todorov, nem sequer ter lido A Filosofia da Composição de Poe, para intuir que o conto tem que se lhe diga. Abreviando: se o romance, pela sua dimensão, permite certos deslizes (quem não acertar numa frase menos feliz de Proust que atire a primeira pedra...), em texto curto as mazelas são visíveis a olho nu, irremediáveis e, eventualmente, mortais. Ora, nada disso acontece nestes contos de Julian Barnes, cuja mestria para o género já ficara comprovada, por exemplo, no hilariante Do outro lado do Canal.
Neste caso a morte substiui-se à França enquanto tema unificador, filtrada aquela pelo envelhecimento das personagens (algumas inesquecíveis). E para arrumar já A Mesa Limão na prateleira certa: embora diferente na forma e estilo, pode ele emparceirar, pelo talento e matéria, com outros dois livros igualmente possuídos pela passagem do tempo – O Animal Moribundo, de Philip Roth, e Diário da Guerra dos Porcos, de Adolfo Bioy Casares.
O tom fica dado na abertura, com «Uma Breve História do Penteado»,
tríptico do mesmo homem que se senta no barbeiro em três idades diferentes, nunca, na verdade, perdendo o medo atávico de se fazer tosquiar, o mesmo que em criança o paralizava quando, acompanhado pela mãe, esta lhe definia o corte: «curto atrás e aos lados e em cima um bocado menos».
«A História de Matd Israelson», que recorda Tchékhov, é uma obra-prima de construção, relato da relação amorosa nunca consumada entre Anders Bodén e Barbro Lindwall, finalmente desfeita pela morte dele, o amor previamente desbaratado num diálogo equívoco.
«Reviver», outra história de amor (entre um homem velho e uma jovem fogosa), mergulha na vida do escritor russo Ivan Turgenev e casa na perfeição nostalgia e ironia: «Ele continuou a invocá-la até à morte. Foi, num sentido, a sua última viagem, a última viagem do coração. “A minha vida ficou para trás”, escreveu, “e aquela hora passada no compartimento do comboio, onde quase me senti como um rapaz de vinte anos, foi a última explosão da chama.” Quer isto dizer que quase teve uma erecção?».
Em «Saber Francês», exemplo maior do chamado humor à inglesa, o estilo epístolar dá-nos a ler as cartas que uma idosa francófona, recolhida num lar, dirige ao próprio Barnes, também ele um amante da língua e da pátria de Flaubert (e quem nunca leu o O Papagaio de Flaubert não sabe o que perde...), interrompidas no fim pela morte da remetente.
«Vigilância» retrata um casal de homossexuais, um deles melómano enfurecido pelo crescendo de tosse e espirros nos concertos; «Apetite» utiliza uma das paixões confessadas de Barnes (a cozinha) para narrar um pungente episódio de senilidade; «A Gaiola da Fruta» faz da sexualidade tardia o tema central...
Os 11 títulos – tão à-vontade na tragédia como na comédia, no humor como na melancolia, no vernáculo como no erudito, nos assuntos da alma como do corpo – são a prova de que a literatura ainda nos consegue provocar aquele «arrepio na espinha», de que falava Nabokov, o menos sentimental dos escritores.
Resumindo: Barnes terá envelhecido e, com ele, as suas personagens. Como o vinho do Porto, quanto mais velho melhor.

30/05/08

Tinha-me esquecido, mas a Joaninha mandou-me dizer que...

... vamos estar na Feira do Livro de Lisboa, no dia 1 de Junho, às 17h30m, e no Porto, dia 7 de Junho, às 16h30m. Procurem-nos no pavilhão da Gradiva.
Hélas, dada a infeliz coincidência de nesses dias e horas ter lições de surf, Pata Branca lamenta informar que não vai poder estar presente.
(... e, por favor, insiste a Joaninha, não nos deixem lá sozinhas com aquele ar desolado de patinho feio, cão abandonado ou escritor deprimido)

Berardo, o homem que veio de longe

Cliquem, por favor, aqui. O antigo link deste artigo (postado há tempos na Pastelaria) foi um ar que se lhe deu, mas ― também na WEB ―, muitos são os caminhos que levam a Roma. No caso, à África do Sul.
Fotografia daqui

28/05/08

A propósito do António Damásio ter andado por aí e de eu estar convencida de que o altruísmo ainda é o que nos poderá salvar da barbárie

Nota sobre Ao Encontro de Espinosa seguida de entrevista feita por e-mail em Outubro/2003 (não, não falámos de elefantes...)
Embora o desaconselhem as normas, este texto começa por uma negação. Ao invés da ideia vulgarizada por alguma ficção científica, na qual a superioridade dos alienígenas fica demonstrada pela sua capacidade de revelar «cabeça fria», o neurobiólogo António Damásio vem reafirmar em Ao Encontro de Espinosa que os sentimentos fazem parte integrante, e determinante, do processo de regulação homeostática da vida.
«Podemos imaginar a máquina da homeostasia como uma árvore bem alta e larga em que os variados ramos são os fenómenos automáticos de regulação da vida», localizando-se no seu topo os sentimentos, entendidos como «a expressão mental de todos os outros níveis da regulação homeostática». Dir-se-ia, pois, que, refutando as crenças profundas de Mister Spock (o imperturbável membro da nave «Enterprise»), quanto mais sentimentais mais evoluídos.
Chegados aqui, cumpre notar que a expressão «sentimentais» resulta de uma mera liberdade linguística. Emoções e sentimentos são tratados por António Damásio neste Ao Encontro de Espinosa com o costumado e transparente rigor científico. Acrescente-se, a propósito, que apesar de tudo o que separa o cientista português do criador do «Método» ― lembremos que ao primeiro livro chamou O Erro de Descartes ― a sua prosa não deixa de invocar a clareza e distinção cartesianas.

Logo no início, A. Damásio esclarece-nos como chegou à «neurologia do sentir»: «Levei muito tempo a descobrir que os obstáculos postos à ciência dos sentimentos não tinham qualquer cabimento e que a neurologia dos sentimentos não era menos viável do que a da visão ou da memória». Vários casos de doença neurológica convencem-no a enfrentar o tabu: «Primeiro, era óbvio que certas espécies de sentimentos podiam ser bloqueados pela lesão de um sector cerebral discreto (...) Segundo, era também óbvio que sistemas cerebrais diferentes controlavam diferentes espécies de sentimentos (...) Terceiro, quando os doentes perdiam a capacidade de exprimir uma determinada emoção também perdiam a capacidade de sentir o correspondente sentimento.»
Neste ponto, contudo, um facto veio contestar o comummente aceite. Afinal «tudo indicava que a emoção precedia o sentimento». E cito: «Alguns doentes incapazes de sentir certos sentimentos eram ainda capazes de exprimir as emoções que lhes correspondem». Recorrendo a exemplos clínicos, Damásio demonstrará a anterioridade das emoções. Aonde o conduz tal demonstração? À possibilidade de afirmar que «temos emoções primeiro e sentimentos depois porque, na evolução biológica, as emoções vieram primeiro e os sentimentos depois». Ou seja, os sentimentos representam um grau de sofisticação maior em termos biológicos.
Além disso, porque os sentimentos resultam das emoções, que têm lugar no «teatro do corpo», não podem ser uma simples «colecção de pensamentos com certos temas ligados a um rótulo emocional». Porque, inteligentemente se pergunta, se assim fosse «como seria possível distingui-los de quaisquer outros pensamentos?» Indo mais longe: «Quando se remove essa essência corporal a noção de sentimentos desaparece (...) deixa de ser possível dizer ‘sinto-mo feliz’, e passamos a ser obrigados a dizer ‘penso-me feliz’.» Na medida em que os sentimentos são uma percepção determinada do corpo a funcionar de uma determinada maneira, não são percepção passiva; isto porque «as origens imediatas da essência do sentimento estão colocadas dentro do corpo e não fora do corpo».
Com a capacidade habitual para se fazer entender, Damásio explica: «O leitor pode contemplar a Guernica de Picasso tão intensamente quanto quiser, o tempo que quiser, tão emocionalmente como quiser, mas nada vai acontecer à tela. Os seus pensamentos sobre a tela vão mudar, claro, mas a tela vai continuar intacta, espera-se. No caso do sentimento, o objecto imediato é ele próprio modificável, por vezes de uma forma radical. O equivalente dessas modificações no exemplo de Guernica seria uma modificação substancial da tela (...) especialmente no caso de sentimentos de alegria e de tristeza, tem lugar um recrutamento dinâmico do corpo (...) que dura vários segundos ou até minutos, e a que correspondem variações dinâmicas da nossa percepção, ou seja, do nosso sentimento.»
Para que servem os sentimentos? Eis outra das perguntas que se enfrenta em Ao Encontro de Espinosa. Partindo dos exemplos de alegria e mágoa (obviamente ligados ao prazer e à dor), Damásio conclui que «os sentimentos são, em suma, as manifestações mentais do equilíbrio e da harmonia, da desarmonia ou do desacordo (...) são primariamente ideias do corpo no processo de obter estados de sobrevida óptimos».
E é nesta inequívoca inscrição do mental na carne que Damásio mais se aproxima de Espinosa. Não porque se manifeste em qualquer deles um materialismo «puro e duro» mas porque afirmam, cada um à sua maneira, a convicção de que nada existe fora da Natureza. O erro de Descartes, e o da modernidade, foi precisamente o de negar essa aliança indissolúvel, de que o dualismo corpo/alma é apenas uma das manifestações. Ao afirmar a sua concordância com Espinosa quando este «disse que a alegria (...) estava associada a uma transição do organismo para um estado de maior perfeição» (e o inverso para a tristeza), Damásio dá o salto para a ética, propondo não só que os sentimentos são fundamentais para o comportamento em sociedade como arriscando, de uma forma bem mais pessoal do que em qualquer outro dos seus livros, uma hipótese radical: na esteira de Espinosa, a do fundamento biológico da virtude. Assim sendo, a autopreservação, essência da vida, obrigar-nos-ia a preservar o outro, sem o qual não podemos sobreviver. Como escreveu Oliver Sacks, «o mais ousado, o mais recompensador, e o mais pessoal dos livros de António Damásio».



Contadas as referências literárias dos seus livros, será que o gosto pela literatura casa com o facto de se ter decidido a escrever para o grande público?
Dou grande valor à comunicação com um público inteligente, é verdade. Tenho, sobretudo, um enorme desejo não só de apresentar as minhas ideias como de saber o que o leitor atento pensa delas. A maior (e inesperada) recompensa que os livros me trouxeram são as cartas que recebo, dia a dia, de todo o mundo, a propósito daquilo que escrevi.
Dizem-me que na edição norte-americana de Ao Encontro de Espinosa, D. Manuel aparece no índice remissivo como Rei de Espanha...
O pobre D. Manuel voltou a ser de Portugal nas novas edições da Harcourt, bem como nas versões europeias. Infelizmente, os índices remissivos não costumam ser revistos pelo autor e é fácil escaparem estes deslizes.
O seu notório sentido do dramático denuncia um grande leitor. Que autores e livros tem à sua cabeceira (os científicos não valem...)?
Shakespeare e T.S. Eliot. Os poetas preferidos incluem Jorie Graham, W.S. Merwin, Wallace Stevens. Leituras recentes: John Banville, W.G. Sebald, A.S. Byatt. Estou a reler George Eliot (Middlemarch). Gosto muito de reler determinados livros e aqueles que mais revisito não precisam sequer de ser os maiores expoentes da «grande literatura». Volto a Joyce (Dubliners, Ulysses), Fitzgerald (The Great Gatsby), Hemingway (The Sun Also Rises) para ouvir a voz de amigos; ao Eça ou a certos poemas de Sophia de Mello Breyner quando tenho saudades de Portugal.
Contrariando a desconfiança pela filosofia, lê-se em Ao Encontro de Espinosa: «Através da história, a filosofia tem prefigurado a ciência e julgo que a ciência deve reconhecer esse esforço». Como aconteceu o seu encontro com essa invenção dos gregos?
Esse encontro deve-se a um grande mestre, Joel Serrão, meu professor de Filosofia no Liceu Passos Manuel. O meu interesse pela «razão das coisas» tinha começado antes, influenciado por pais que me fizeram ler, muito cedo, literatura inglesa e americana, cheia de perguntas sobre o mundo real. A filosofia é o princípio de todas as ciências e foi, durante séculos, todas as ciências. Hoje não pode nem deve competir com as disciplinas científicas; mas pode e deve contribuir para o rigor e clareza dos conceitos de que a ciência faz uso. Ou seja: a filosofia continua a desempenhar um papel central na cultura.
Quer isso dizer que se opõe a sacralização da ciência?
A ciência é uma das vias para o saber mas não é a única. É evidente que certos aspectos da natureza requerem uma abordagem científica, e é evidente que a tecnologia que deriva da ciência tem um papel decisivo a desempenhar nas soluções para o sofrimento humano. Mas a integração dos dados científicos numa visão abrangente da natureza requer uma empresa supracientífica. Há mais de um pedestal dentro da cultura.
O lançamento de um livro como Espinosa, de Steven Nadler, poderá ser (mais) um sinal de que assistimos à redescoberta do filósofo proscrito educado na língua portuguesa?
Espinosa começa hoje a ser redescoberto. Não há grande dúvida de que a figura central e insuficientemente reconhecida do «Radical Enlightenment» é Espinosa, e que as suas ideias sobre o tecido social tiveram uma influência subterrânea no desenvolvimento da modernidade europeia e norte-americana. A mim, porém, aquilo que mais me interessa, naturalmente, é a sua radicalidade no que respeita à concepção da mente humana. É tão radical que antecipa diversas ideias que hoje fazem parte da biologia e da neurociência de ponta. É por isso que digo neste livro que Espinosa foi um protobiologista. É de notar também que esta modernidade biológica implica uma modernidade ética que era revolucionária no século XVII e que continua ainda a sê-lo. Talvez o maior valor de Espinosa resida precisamente nesse facto.
O tema das emoções tem sido uma constante do seu trabalho. Em O Erro de Descartes relacionava-as com a razão, em O Sentimento de Si com a consciência. Neste terceiro, ocupa-se das «emoções sociais». Quais foram, resumidamente, as investigações que lhe permitiram ir alargando o campo de acção das emoções?
Há diversas linhas de investigação que apoiam esse percurso. As primeiras dizem respeito a doentes com lesões pré-frontais. As segundas a doentes muito jovens com lesões semelhantes. As primeiras demonstram a ruptura dos mecanismos de decisão que se segue ao comprometimento de certas emoções; as segundas mostram como tais comprometimentos bloqueiam a socialização de uma forma quase completa. Uma outra linha de investigações, em indivíduos normais, usando a neuroimagem funcional, também nos deu a possibilidade de delinear pormenores do processo de sentir as emoções. Todo este trabalho tem permitido confirmar hipóteses formuladas há mais de uma dezena de anos. E daí podermos afirmar que na base de todas as faculdades ― decisão, consciência, comportamentos éticos ― estão o corpo, a emoção como emblema de regulação biológica, e o sentir das emoções.
«Os sentimentos orientam os esforços conscientes e deliberados da autoconservação e ajudam-nos a fazer escolhas que dizem respeito à maneira como a autopreservação se deve realizar», escreve. Estaria de acordo em contestar a famosa máxima cartesiana «Penso, logo existo» através da fórmula «Sinto, logo existo»?
Absolutamente. «Sinto, logo existo» é uma proposição verdadeira e é a formulação preferível. Sem o sentir não é possível pensar ou conhecer o que se pensa. Sem sentir não há «si». E na ausência da maquinaria da emoção e do sentir duvido que o comportamento moral jamais tivesse emergido.
Ao dualismo alma/corpo cartesiano, que reduz o corpo a uma máquina e o espírito a uma substância pensante, Espinosa contrapõe uma concepção monista em que corpo e mente não são duas substâncias distintas mas manifestações diferentes da mesma substância: a Natureza ou Deus (que deixa de ser transcendente). A concepção dualista de Descartes seria responsável (escreveu-o em O Erro de Descartes), por exemplo, pela «incapacidade de a medicina tradicional considerar o ser humano como um todo». Mas, por seu turno, não poderá o pensamento espinosano conduzir a um alargamento do mecanicismo ao território da mente?
É uma questão pertinente. De facto, o desvendar do tecido biológico pode levar a teorizar um mecanismo estreito e ignorante. É um risco, claro, mas temos de correr esse risco e contrapor uma visão geral não mecanicista e inteligente. O que não podemos, parece-me, é chegar a ela sem compreender os mistérios da biologia.
Reclamar uma base neurobiológica para o comportamento humano, nomeadamente para o comportamento social, não pode deixar de levantar o problema da liberdade. Nesse contexto, seria possível explicar melhor a afirmação: «os sentimentos abrem a porta a uma nova possibilidade: o controlo voluntário daquilo que até então era automático»?
Estou convencido, e julgo que Espinosa também estaria, de que apesar do passado biológico e cultural que pesa sobre nós quando decidimos ― e que nos conduz quase inevitavelmente a certas decisões ― dispomos de um certo espaço de manobra nessas decisões, um certo grau de livre arbítrio. O espaço pode não ser grande mas existe em muitas circunstâncias, e permite-nos contrariar respostas automáticas a que a herança biológica nos poderia conduzir. A capacidade que hoje temos de contrariar impulsos básicos depende dos sistemas de homeostasia social que temos vindo a criar, muito imperfeitamente, ao longo de uns escassos milhares de anos.
Dado que a vida tende a preservar-se, no seu entender devem os comportamentos humanos autodestrutivos, nomeadamente o suicídio, ser considerados patológicos?

É difícil e perigoso distinguir o normal do patológico no comportamento humano. Na maior parte dos casos, contudo, o suicídio não pode deixar de ser patológico, quer se trate de alguém com uma profunda depressão, quer se trate de um kamikaze.
A sua confiança nas vantagens que a neurobiologia pode trazer está bem visível quando escreve que «o êxito ou o fracasso da humanidade depende em grande parte do modo como o público e as instituições que governam a vida pública puderem incorporar essa nova perspectiva da natureza humana em princípios, métodos e leis». Contudo, a história dos homens permite certas desconfianças. O avanço do conhecimento neurobiológico poderá legitimar receios na área da manipulação das mentes ou serão eles meros produtos de uma ficção-(pseudo)científica?
O problema da manipulação das mentes é muito sério, embora deva ser visto sob diversos ângulos e com uma certa ironia. A manipulação das mentes que permitiu as recentes eleições americanas nada deve à neurobiologia: deve tudo à sabedoria da publicidade. Se soubermos em mais pormenor o modo como funcionam as nossas emoções e sentimentos, talvez seja até mais fácil defendermo-nos dessa sábia manipulação. O espanto e a admiração podem ser péssimos conselheiros.
Quando afirma que «os nossos cérebros continuam equipados com a maquinaria biológica que nos leva a reagir de um modo ancestral» (por exemplo, gerando emoções que conduzem a preconceitos raciais e culturais que terão sido úteis em termos evolutivos), e quando acrescenta que «alguns dos dispositivos da regulação da homeostasia do nosso organismo têm vindo a ser aperfeiçoados ao longo de milhões de anos de evolução biológica, como é o caso dos apetites e das emoções. Mas outros dispositivos, nomeadamente os sistemas de justiça e de organização sociopolítica, existem há uns escassos milhares de anos», não estará a confiar demasiado no melhoramento biológico da condição humana? Neste caso, não será mais o humanista a falar do que o homem de ciência?
Concordo que quem fala nessas passagens é o humanista e optimista que sou. Contudo, não espero que o nosso genoma venha a incorporar os novos mecanismos de homeostasia não automática no futuro próximo. Os novos mecanismos emergem num espaço cultural e serão, antes do mais, transmitidos culturalmente. Daí o meu optimismo. Nada nos impede de encontrar soluções novas para as mais variadas problemáticas socioculturais, que são, todas elas, necessariamente problemáticas biológicas de alto nível ― as estruturas sociopolíticas estão ligadas por um cordão umbilical à regulação básica da vida. Nada nos impede de persuadir os seres humanos de boa-vontade a adoptar essas soluções. Hoje mesmo. Não é preciso aguardar a transmissão genética.
Em termos éticos, faz sentido para si propor a indiferença emocional (designadamente a incapacidade para sentir compaixão) como base para o «mal»? E, sendo assim, poderia o «mal» ser entendido como uma «anomalia»?
Boa questão. A falta de compaixão é patológica, embora a patologia tenha diversas causas ― não precisa de ser provocada nem por uma lesão cerebral, nem por uma mutação genética; pode ter causas culturais. Quanto ao «mal» que daí deriva é, de facto, uma anomalia. É necessário compreender, porém, que o «tratamento» dessa «anomalia» não se restringe à medicina e que inclui «terapêuticas» socioculturais.
Podemos concluir do seu livro que as emoções são um exclusivo dos organismos vivos e, nessa medida, criar máquinas que sintam uma impossibilidade da natureza? Ou ser-nos-á permitido imaginar, no futuro, criaturas artificiais, à imagem dos replicantes do Blade Runner, dotados de sentimentos?
Não vejo como essas criaturas de ficção possam sentir como sentimos, a não ser, é claro, que sejam feitas da mesma carne de que somos feitos, o que significa que não seriam artificiais mas... humanas. Formalmente não creio que exista qualquer problema - é possível imaginar seres artificiais que sentem. O problema reside no conteúdo exacto daquilo que sentem.
Pondo agora o sentir de lado, «O homem pensa, Deus ri»?
Um provérbio curioso. À primeira vista o significado é transparente. A espécie humana precisa de pensar para que lhe possa ser possível resolver a sua tragédia. Deus não sofre qualquer tragédia e por isso pode rir, sem drama, impensadamente. Todavia, na perspectiva actual o provérbio não funciona. O Deus de Einstein não se ri do homem, não joga aos dados com o homem. E o Deus espinosano, que existe na espessura da matéria e dos organismos vivos, também não. A crueldade do divino é uma aparência. O que não significa que a realidade não possa ser ainda mais perturbante: a indiferença. Seja como for, dado que podemos pensar, podemos responder, e, quando as coisas correm bem, até podemos rir.

25/05/08

O Senhor Comentador explica o Acordo Ortográfico

Ou seja, o Acordo Ortográfico é aquela coisa que estragou «cinco por cento da nossa ortografia mas [que nos obriga] a comprar cem por cento de um dicionário novo».

24/05/08

Lídia Jorge: os contos dispensáveis

O texto «Teses sobre o conto», do escritor argentino Ricardo Piglia, inicia-se com uma anotação de Tchekov: «Um homem, em Monte Carlo, vai ao casino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se». Nenhum dos episódios registados pelo mestre russo tem lugar em Praça de Londres que é, além da designação do último livro de Lídia Jorge, o título da primeira das suas cinco narrativas. E as outras são: «Rue de Rhône», «Branca de Neve», «Viagem para Dois», «Perfume», esta última dedicada a Yilmaz Güney.
Estruturalmente denunciam uma construção linear, com a (diminuta) tensão alicerçada, sobretudo, em aspectos psicológicos ou de intriga, a qual, por vezes, se quer de desfecho surpreendente; casos de «Perfume» ou de «Viagem para Dois». «Praça de Londres» opta pelo anticlímax final; «Rue de Rhône» denuncia pendor feminista; «Branca de Neve» tenta o registo mágico. Ou seja, é difícil encontrar-lhes unidade na arte de contar, casadas apenas pelas preocupações sociais ou de género que as atravessam.
Parafraseando a anotação de Tchekov. «Praça de Londres»: uma mulher a contas com a Justiça caminha pela rua, cruza-se com um homem velho com uma criança ao colo, persegue-os até ao prédio onde moram, foge antes de conseguir entrar; «Rue de Rhône»: numa loja, duas mulheres cobiçam uma mala de pele de crocodilo, percebem mal os zeros do preço, pagam-na só depois verificando o erro, levam o exemplar pré-histórico para casa; «Branca de Neve»: no escritório, já tarde, na véspera de Natal, a gerente bancária Maria da Graça faz um telefonema de trabalho para o cliente Silva Dias que o considera inadequado à época, atravessa a cidade deserta, é perseguida por um bando de crianças que se abriga do frio «à sombra» do seu casacão de caxemira, é assaltada, acaba em casa de amigos reinventando o sucedido de modo a salvar o mais pequeno dos ladrões da «agulha da perversidade»; «Viagem para Dois»: dois passageiros num comboio, uma escritora de romances de cordel e um escriba de «relatórios criminais», ele conta-lhe o episódio da vizinha cujo anel de noivado fora engolido pelo gato, confessa-lhe o epílogo do relato que o implica, aconselha-a a omiti-lo quando passar a história ao papel por resultar «demasiado kitsch»; «Perfume»: um menino é abandonado pela mãe, vive com o pai músico (sempre em tournée) e a babá, esta começa a ficar obcecada pelo perfume das roupas do homem adivinhando-lhe orgias, o menino sofre em silêncio, o pai decide passar a levá-lo consigo para onde quer que vá, o menino descobre uma noite que a «orgia» que dorme na suite que partilha com o pai é a sua própria mãe, com a qual aquele se encontrava sempre que podia.
Sirvo-me dos resumos para assinalar que falta a Praça de Londres essa capacidade de contar uma história remetendo para outra (tese fundamental de Piglia – a de que um conto conta sempre duas histórias), deixando pouco espaço para o sonho e para a imaginação do leitor, dissipada esta pelo moralismo que cada um dos títulos evidencia.
Mesmo naquele que dá nome à obra (na nossa opinião, o melhor), o discurso imaginado da porteira, no seu registo corriqueiro, corta-lhe o voo, empobrece-o, rebaixando-o para uma realidade telenovelesca que aniquila o efeito de estranheza.
E, entre outras, residirá, nessa incapacidade para levar a «estranheza» às últimas consequências, a razão maior do falhanço deste livro. Noutros casos, como em «Viagem para Dois», a ironia vê-se desfeita pela falta de contenção, esquecido que, num género que obriga à síntese, o mais importante deve ficar por dizer. O mesmo se aplica a «Branca de Neve», onde o explícito pendor alegórico destrói uma ideia que resultaria perfeita em Poe: as crianças ladras que se multiplicam misteriosamente «à sombra». A babá de «Perfume» merecia ter sido eleita personagem principal (e podemos imaginá-la na perfeição sob a batuta de Flaubert), perdendo-se a história em pormenores realistas que não só nada acrescentam como reforçam a fraqueza da voz do narrador, um homem que recorda a sua infância.
Em resumo: Praça de Londres desilude, apesar da boa abertura de «Perfume» ― «Diz uma velha canção que no fundo de uma garrafa se encontra a vida de um homem, e por certo que assim acontece desde que se inventou a fermentação do malte» ― poluída de frases chãs, cuja sonoridade pouco terão de literário (assumida a incapacidade da crítica para definir «literário»), ideias curtas e excesso de mensagem.
Imagem: ©Sunna Sigurdardottir.
Praça de Londres, Lídia Jorge, Dom Quixote, 2008

23/05/08

Quando eu for grande também quero escrever prefácios dispensáveis

Tenho entre mãos um dos clássicos da literatura do século XX, Rayuela, palavra que no original significa «jogo da macaca», texto poderoso assinado por Julio Cortázar e traduzido (só) agora em Portugal pela Cavalo de Ferro.
Olho para a capa e concluo que é uma belíssima capa. Olho-a outra vez e leio: «Prefácio de José Luís Peixoto». Morre-se-me o entusiasmo. O que tem o crochet e o sentimentalismo pacóvio de Peixoto que ver com o experimentalismo e o rigor de Cortázar?
Fui ver, como o Augusto Gil.
Pois bem, vocês conhecem-se (esta é uma frase de efeito, naturalmente). Um quebra-cabeças de 631 páginas resumido a folha e meia? E coroado pelo título «Prefácio dispensável»? Solta-se-me a bipolaridade: da estranheza passo à irritação. Começo a ler. A meio do rol de coisa alguma, já passei da irritação à gargalhada.
Na tal folha e 1/4 (tentando ser mais precisa), o moço de Galveias consegue descarregar dois pianos, e cito:
1. «trata[-se] do livro incontornável de um autor incontornável na literatura do século XX»;
2. «estamos na presença de um dos mais importantes livros escritos na segunda metade do século XX».
Além disto: NADA. Minto (até ao dizer que minto), acrescenta: «Reparo agora que ainda não escrevi suficientes frases de possível citação na contracapa».
Fui ver, como o Augusto Gil.
Na contracapa: NADA. Grande es Dios.
E Cortázar, claro.

20/05/08

A Leya, a feira e as barracadas do Américo

Hoje visitei todos os pavilhões, se não contar com os que não visitei, foi uma das frases inesquecíveis de Américo de Deus Tomás. Voltaremos a ouvi-la na boca do Conde de Anadia?

Ninguém me manda ser parva

Aceitei uma colaboração, mas, subitamente, ocorreu-me uma dúvida: por que é que aquela porra se chama 2+2=5?

18/05/08

Da arte do romance

Tradutor premiado, poeta encartado, cidadão interventivo, opositor firme do novo Acordo Ortográfico, romancista às vezes. Vasco Graça Moura acaba de publicar Alfreda ou a Quimera, romance cuja origem, como o próprio explica em «nota final», se encontra num conto de Verão encomendado ao autor pelo Expresso.
Se a trama assenta numa obsessão – a que a Alfreda desperta em João de Melo Saraiva, protagonista e apaixonado por livros antigos, narrador e sujeito da história que com Alfreda se cruza precisamente por causa de um lote de obras à venda – , o registo chega-nos desprovido de qualquer catastrofismo, mais perto do cinismo do que da tragédia, e isto embora João de Melo confesse, quase no final, com certeza não a despropósito, a sua paixão por esse melodrama maior dirigido por Visconti, Senso, que é também ele uma história de obsessão, mas essa de qualidade mortífera. O lirismo, aqui, quase só assenta à outra personagem que pontua o texto, a cidade do Porto (e as paisagens nortenhas), invocada tanto na sua geografia como nos tipos humanos que define, um dos quais, Pips, aliás, William Brompton-St. James, por acaso (?) é inglês.
«Há um Porto expressionsita e fragmentário, às vezes existencialmente desesperado, vivido por dentro, interiorizado por quem sente a sua pertença à cidade, liricamente escuro e visceralmente obscuro no seu dramatismo, ramificado numa dimensão do tempo que se recupera por manchas e blocos a interpenetrarem-se na memória, por vezes em violentos diálogos entre o granito, o rio, as brumas, a luz do sol, a chuva», escreve-se na pág. 69, sem distanciamento, poderíamos arriscar. Porque, no resto, adivinha-se a lonjura que vem dos clássicos, intercalada com o gozo pícaro que se destaca quando se opta pela paródia: «(...) a Bettina chegou mais cedo e disse que tinha muita pena, mas não podia deixar de ir assistir a um debate sobre o terrorismo. (...) A mim, o terrorismo não interessava, a não ser na medida em que contra ele fosse criada uma segurança eficaz para toda a gente. E, além disso, chovia. E. além disso, eu não estava vestido para ir a lado nenhum, nem estava para mudar de roupa. (...) Mas ela mostrou-me que vinha de gabardina de nylon, jeans e sapatos de ténis, garantiu que a sessão era absolutamente informal (...) que ia ser muito interessante (...) que a gente que lá ia estar era muito simpática, inteligente e informada, enfim, lá me arrastou para a sala-bar de uma cooperativa qualquer na cave esconsa de um prédio esconso de uma zona ainda mais esconsa ali para os lados da Campanhã, um espaço com um pé-direito muito baixo, cheio de fumo a pairar como nevoeiro sobre as mesas, e com as portas e as janelas fechadas por causa do frio e das correntes de ar», pág. 85.
Se da combinação destas (boas) influências seria legítimo esperar um bom romance, Vasco Graça Moura perde aqui, porém, uma oportunidade para descolar do realismo e descolando-se, fazer voar o leitor, dando-lhe a conhecer mundos menos óbvios ou imediatamente identificáveis. Apesar da subtil mordacidade do anticlímax do final, imagine-se esta femme fatale, mulher que viveu várias vezes, nas mãos de Henry de Montherland. Imaginem-se estes inspectores de polícia nas mãos de Cardoso Pires. Imagine-se esta burguesia cultivada nas mãos de Eça.
Há neste último romance de Vasco Graça Moura um efeito de reconhecimento que o empobrece, que não ultrapassa a fronteira que G. K. Chesterton sabia distinguir a ficção da literatura: a primeira, uma necessidade, a segunda, um luxo (com História). Parafraseando Milan Kundera, em A Arte do Romance, depois de Cervantes se interrogar sobre a aventura, Samuel Richardson «desnudar a vida secreta dos sentimentos», Balzac descobrir «o enraizamento do homem na História», Flaubert explorar o território desconhecido do quotidiano, Tolstoi se debruçar sobre o irracional, depois de Proust ter sondado o passado e Joyce o presente, ou Thomas Mann os mitos, só restará ao romance reinventar-se ou morrer. Com Alfreda ou a Quimera, infelizmente, Vasco Graça Moura não o ressuscita.
Alfreda ou a Quimera
Vasco Graça Moura, 2008, Bertrand

15/05/08

Adenda ao post «A Pastelaria convida mas não garante bolas de berlim»

Só para informar que no lançamento do livro Joaninha, a menina que não queria ser gente, que será apresentado por Gonçalo M. Tavares já neste sábado, dia 17, às 15h30, na Livraria Bertrand da Avenida de Roma em Lisboa, embora se confirme que não haverá bolos, serão distribuídos champanhe e cerejas.

13/05/08

O 13 de Maio, a extrema-esquerda e a progressão na carreira

Provavelmente já nem os implicados se lembram. Celebrava-se o 13 de Maio e o jornal era de extrema-esquerda. Bom, na altura de extrema já não teria muito mas a secção cultural do dito – da qual a humilde signatária deste post fazia parte, sim, que eu não sou como alguns que quando lhes lembram o passado se põem a assobiar para o alto dando-se ares de respeitáveis colunistas adeptos desde a mais tenra idade da «sociedade aberta» – adelante: a citada secção alimentava um saudável e semanal espírito anarquista que incluía socas lançadas à cabeça dos membros mais obtusos (que nós cultivávamos muito a inteligência e na altura usavam-se muito socas sendo portanto o que tínhamos à mão...), caralhadas e murros na mesa quando era preciso, tudo isto, julgo não mentir, regado apenas a café de saco que a malta nesses tempos vivia tesa embora feliz.
Celebrava-se, pois, o 13 de Maio e resolvemos fazermo-nos ao caminho, salvo seja. Publicaram-se vários textos – devidamente enquadrados por uma análise sociológica que pretenderia dar uma certa credibilidade à desbunda, a qual, análise, sairia assinada por conhecido arquitecto, na altura ilustre desconhecido, e cujo conteúdo retomaria apenas, penso não mentir, aqueles clichés da religião ser o ópio do povo, bla, bla, bla, que OVNIS não era assunto que um marxista se dignasse referir –, e é um desses textos que lembro sempre com particular clareza e distinção no 13 de Maio. Rezava assim (cito de cor):
Estavam três pastorinhos a pastorear muito sossegadinhos em Fátima quando, de súbito, avistam a Nossa Senhora em cima de uma azinheira (julgo que é uma azinheira mas se me estiver a enganar na árvore que isso fique por conta da minha ignorância dos meandros da coisa). Estupefactos, mantêm-se mudos e quedos até que um deles mais afoito (não recordo qual) avança e pergunta à aparecida, gargarejando a tirada do Frei Luís de Sousa:
– Quem és tu?
A senhora, sem se deixar intimidar pelos clássicos, responde:
– Sou a Nossa Senhora e venho trazer a verdade ao mundo.
É então que outro dos pastorinhos (e a este também não consigo nomeá-lo), dá uma cotovelada para o lado (posso estar a inventar a cena da cotovelada) e comenta:
– Outra marxista!
Já não sei se o texto terminava assim mas sei que deu direito a carta de um leitor anónimo – que, por acaso, viemos a saber quem era alguns anos antes dele se transformar num respeitável director dos nossos media (visto que também por lá andava mas era dos sérios, nada de socas...) – que se indignava com a falta de respeito demonstrada pela supracitada secção cultural pelos leitores católicos, carta a que respondemos, com coeso espírito de grupo, dizendo que o jornal não tinha leitores muito menos católicos. Depois separámo-nos todos e a maioria de nós fez-se à vida, com o anónimo a subir altíssimo na carreira.

09/05/08

A Pastelaria convida mas não garante bolas de berlim


Para os frequentadores da Pastelaria com dificuldades na leitura do texto acima (eu própria, se não fosse parte interessada me incluiría), reproduzo:
A Bertrand e a Gradiva têm o prazer de o convidar a estar presente na sessão de lançamento do livro Joaninha, a menina que não queria ser gente de Ana Cristina Leonardo (texto) e Álvaro Rosendo (ilustrações).
O lançamento terá lugar no dia 17 de Maio de 2008, pelas 15h30 na Livraria Bertrand-Roma, na Avenida de Roma nº13B, em Lisboa.
A apresentação da obra será feita por Gonçalo M. Tavares.
Seguir-se-á uma sessão de autógrafos.
Aproveito para agradecer a todos os que, por aí nos blogues, fizeram referência ao livro.

07/05/08

Já agora, e porque estamos em Maio


Para alguns, A Sociedade do Espectáculo continua a ser a bíblia a que se recorre em caso de dúvida. Publicado originalmente em 1967 em França, de texto marginal passou a obra de culto e referência, sobrevivendo ao tempo e ao seu autor, Guy Debord (1931-1994). Título que se converteu, entretanto, em conceito banalizado, citado por publicitários e comunicadores update, nele se expõe, contudo, a mais radical das críticas à sociedade moderna, profecia de Cassandra que antecipa o actual modelo global e tecnológico, confrontando-nos com a nossa vulnerabilidade face a uma máquina avassaladora que se constitui como realidade única: «[o espectáculo] é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinitivamente na sua própria glória». E é precisamente pela análise das teses presentes nesse livro que se inicia Guy Debord do ensaísta alemão Anselm Jappe, também autor de As Aventuras da Mercadoria (Antígona em 2006).
Não se trata de uma biografia. Aliás, logo no «Prefácio à Edição Portuguesa», Jappe deixa isso bastante claro: «(...) a perspectiva historiográfica, biográfica e anedótica é um aspecto meramente secundário nesta obra. A sua preocupação principal reside na análise teórica, na busca das fontes do pensamento de Debord, na demarcação do seu posicionamento em face da teoria marxista e na comparação com outros autores seus contemporâneos».
Ensaio de reflexão política, portanto, que deixa de fora aspectos mais ligados ao «Debord poeta», a sua leitura pressuporá algum conhecimento do pensamento do teórico e cineasta francês que fez da contestação uma forma de vida, mesmo se não podemos deixar de considerar seriamente a advertência lançada por José Bragança de Miranda, em texto que lhe é dedicado: «(...) pelo menos desde há 20 anos se tem vindo a fazer com Debord o que já tinha sido feito a McLhuan. A sua redução a uma fórmula: a sociedade do espectáculo, metonímia de Debord, como o TIDE é a metonímia dos detergentes».
Conseguirá Debord subtrair-se a essa integração? O homem a quem o Maio de 68 tantas palavras de ordem deve e que até ao fim recusou submeter-se (suicida-se aos 64 anos driblando a morte que a doença lhe pressagia), militante marginal cuja obra completa acabaria publicada na conceituada Gallimard, membro do movimento artístico/político Internacional Situacionista dado a cisões, solitário mergulhado no mundo, megalómano e visionário – acabará, também ele, reduzido a celebridade hollyoodesca, triturado pela lei do espectáculo da qual, segundo o seu sombrio Comentários sobre a Sociedade do Espectáculo (1988), já não parece haver saída?
Anselm Jappe é, claramente, um admirador do homem e da obra, tentando, neste ensaio, sublinhar a actualidade das teses de Debord, que o tempo não teria caducado. Apesar disso, estamos longe de um elogio acrítico, de um panegírico militantemente «Guy The Bore», como lhe chamaram em tempos, num registo provocatório que talvez o próprio pudesse subscrever, os membros (anónimos) do Luther Blissett Project. Leia-se, pois.
Guy Debord, Anselm Jappe, Antígona, 2008
(As capas foram roubadas aqui)

06/05/08

What's in a name, ou melhor, what's in a mestrado? Comentários servidos na Pastelaria a propósito do Allgarve, golfe e respectivos mestres

De um comentarista que assina Tonecas Melga, recebi o seguinte apelo:
Queria fazer um Mestrado em Tomates e Salpicões. É coisa que se coaduna muito bem aqui por Montalegre. Temos muitos tomates e muitos salpicões. E damos emprego e vazão a todos. Será que posso fazer o Mestrado aqui na zona, ou tento fazê-lo aí no Algarve? Preciso de uma licenciatura na área da agropecuária, ou basta-me por exemplo um Mestrado em gestão / manutenção de campos de golfe?
Dado que o post comentado por Tonecas Melga tem originado bastas intervenções, que vêm chegando apropriadamente a contagotas, retomo o assunto. Com uma certeza: a parvoíce não tem fronteiras. O que, por sua vez, confirmará a frase atribuída a Einstein: «Só duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana».

02/05/08

Estado do mundo: e aos instaladores, não se pode exterminá-los?

Num livro de entrevistas, cujo título não recordo, Francis Bacon ― o pintor e não o outro que disse, ajuizadanente, things alter for the worse spontaneously, if they be not altered for the better designedly ― quando interrogado sobre a pintura abstracta respondeu que ela não andaria longe do padrão para os sofás que combinam bem com a sala. O que me leva a este post não é o abstraccionismo pictórico mas uma coisa um pouco mais encombrant e relativamente mais moderna: instalações.
Duas notícias recentes dão-nos conta do sentido da evolução do fenómeno: uma refere um cão famélico mostrado a definhar em público, outra anuncia um alemão em busca de um moribundo, disponível para morrer confortavelmente instalado numa galeria de arte.
E ambas transmitem todo um novo sentido à frase de Cesariny: «Se não vais ao coquitéle estás fodido!»